Algumas ponderações sobre Ensino Religioso



Em meu primeiro post sobre Ensino Religioso gostaria de esclarecer alguns pontos:


1) Não sou ativista de um Ensino Religioso confessional, catequético, evangelizador ou salvacional.

2) Reconheço que as crianças e adolescentes que estudam em escolas públicas são necessitadas em muitas frentes: princípios, valores e regras, sobretudo, condições materiais para uma vida digna. Refiro-me a comida, roupas, lazer, cultura, moradia, sistema de saúde etc. Mas, o Ensino Religioso não é o componente curricular que vai mudar esse quadro e providenciar todos esses serviços. Esse ponto, portanto, complementa o primeiro. Tais serviços são deveres do Estado.

3) Ensino Religioso é um componente curricular legítimo, autorizado pela Carta Magna e LDB. Portanto, gostem ou não é direito dos cidadãos e dever do Estado fornecê-lo sob as condições adequadas, isto é, sem cunho proselitista e assegurando a liberdade de crença ou não-crença, de todos os cidadãos brasileiros.

4) As legislações, ao meu ver, não estão equivocadas em autorizá-lo, mas o Estado (União, unidades da Federação e municípios) é completamente falho em não providenciar as diretrizes para o Ensino Religioso, formação e capacitação continuada para os docentes dessa disciplina.


Tendo em vista esses quatro pontos, me interessa a discussão sobre Ensino Religioso que problematiza o caráter de nossa laicidade, não para negá-la, mas para pensá-la à luz de nossa realidade histórica e sociocultural. Isso porque parto do suposto de que a laicidade construída pela nossa sociedade brasileira, diferente da laicidade francesa, nunca excluiu a presença do discurso religioso de suas esferas decisórias. Portanto, a legitimidade desse componente curricular se explica pela necessidade de compreender a presença desses discursos na esfera pública brasileira, apontando seus limites e reconhecendo suas contribuições. Um Estado moderno e democrático é antes de tudo um Estado construído na base do diálogo entre as diferentes representações sociais e não é segredo, tampouco novidade, que a religião enquanto instituição hegemônica e normativa perdeu sua centralidade, mas articulou novas formas de inserção política que lhe permitiram (e permitem) vociferar suas ideologias na arena pública. 


Sendo a escola pública uma instituição democrática e livre da tutela da religião – qualquer que seja ela – entendo ser esse o lugar adequado para que se ensine sobre religião ou, para ser mais precisa: sobre o fenômeno religioso. Assim, muito mais do que falar sobre religião ou religiões (para que não soe algo essencialista), é tarefa do Ensino Religioso falar sobre o religioso ou do religioso reconhecendo que ele compõe a história da construção do nosso Estado moderno e democrático. E, isso pode e deve ser feito de forma completamente independente das lideranças religiosas: padres, pastores, babalorixás, xamãs, gurus e quaisquer outros. 


Para deixar ainda mais claro, a função do Ensino Religioso é contribuir para a formação cidadã fornecendo às crianças e aos jovens instrumentos para que construam consciência crítica e sejam sujeitos autônomos, por meio de um tipo de ensino caracteristicamente compreensivo, isto é, que aborda as religiões, explica-as para que sejam compreendidas em seus próprios termos e, com isso, permite aos educandos em formação que elaborem seus próprios juízos – favoráveis ou contrários às religiões. A gritaria contra o Ensino Religioso que não reconhece a relevância do tema religião no período contemporâneo, entrementes, parece desconhecer a possibilidade de estudar o fenômeno sem ser religioso. Mais do que isso, parece desconhecer que religião é também objeto de pesquisa e, nesse sentido, pode ser tematizado sem qualquer cunho confessional. É tematizado porque é fruto da especulação, da criação e da produção humana. É, portanto, histórico e cultural.


Para finalizar, por enquanto, parece-me mais inteligente compreender um fenômeno do que excluí-lo. Até porque mesmo que o Ensino Religioso não agrade a todos, as religiões e suas representações continuarão a povoar a arena pública e as escolas. Não seria mais inteligente compreendê-las ao invés de caçá-las?

Por Elisa Rodrigues

Comentários

  1. Parabéns pela iniciativa, Elisa!

    Que você continue nos agraciando com a publicação de suas ideias!

    Com o blog, certamente você chegará a um público que dificilmente lê artigos acadêmicos (Vejo isso pelo meu). Assim, por meio de reflexões mais "palpáveis" para o público leigo, outras pessoas poderão acessar pontos de vista mais aprofundados acerca da religião, tornando-se mais abertos a pensar e discutir essa questão na sociedade.

    Abraço!
    Miguel Angelo

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    1. Valeu pelo incentivo Miguel. Divulgue entre seus pares. Abraço, Elisa.

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  2. Muito interessante esta reflexão sobre o papel do Ensino Religioso nas escolas públicas, especialmente quando toca a questão crucial de que é melhor compreender um fenômeno do que excluí-lo e, portanto, sabemos que a religião é um fenômeno estudado e pesquisado em nossas academias, além do fato de que como tantos outros fenômenos, está circulando nos ambientes escolares, marcando valores e opções de vida, os quais, em um processo educacional, não se pode negligenciar.

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    1. Essa é a idéia: não podemos negligenciar que esse tema está circulando nas escolas. E nem devemos. Se os educandos o trazem é porque é matéria da vida. Portanto, merece ser tratado com o mesmo apreço dedicado a outros componentes curriculares.

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  3. Concordo bastante com muito do que foi dito aqui. Muito legal. O que me preocupa é: como realizar esse Ensino Religioso que você descreve, e que é defendido por vários cientistas da religião brasileiros a cerca de uma década por meio de publicações?
    Ainda mais, quando este tema não parece ser do interesse de uma grande maioria de pessoas...
    Que tipo de articulação socio-política pode viabilizar isso?

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  4. Respondendo ao Ktrak, primeiro, obrigada pela reação. Segundo, o interesse é predominantemente dos professores que atuam na rede pública de educação e se vêem na situação de ensinar sobre esse conteúdo sem o preparo devido. Maior ainda o interesse daqueles que se formam em CRE e querem lecionar, mas se deparam com a situação incerta dos Estados e municípios que colocam e tiram aleatoriamente o ER das suas suas escolas. Por causa, geralmente, de secretarias da educação conduzidas por gestores e não educadores. Então, meu entendimento inicial é de que a articulação tem de encontrar-se na base, a partir da classe docente. Seja exigindo formação, seja reivindicando que o componente curricular seja ofertado como prescreve a LDB e as resoluções do CNE.

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    1. Ok, "articulação tem de encontrar-se na base, a partir da classe docente". Já há alguma associação ou sindicato nesse sentido?

      Outra coisa... sem um PCN oficial, como todas as outras areas tem, você não acha que, legalmente, os profissionais dentro das escolas continuam sem uma referencia,e por isso mesmo podem ensinar o que quiserem?

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    2. Quanto ao problema dos PCNs, não oficiais, sei que existe uma mobilização para a formulação de diretrizes nacionais para o ER. A questão é que as comissões eleitas para a discussão, em geral, travam o debate antes mesmo de ele vir ao grande público para discutí-las. Isso é um problema. Daí que, novamente, a articulação tem de emergir da base. Em Minas Gerais desconheço qualquer articulação, associação, organização que reúna e que construa uma pauta de reivindicações do segmento de professores de ER. Mas existem os sindicatos de professores que poderiam tomar como ponto de pauta, o problema do ER. Se sabemos que não há uma referência para nortear o trabalho dos educadores com esse componente curricular já temos aí o primeiro ponto da agenda de reivindicações dos professores de ER. Acontece que isso precisa sair do reino das reclamações de corredores, em direção das assembleias dos sindicatos, das secretarias de educação municipais e estaduais, das redes sociais, dos eventos de educação e assim por diante... E quem toca esse barco?
      Abraço,
      Elisa

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