“A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para
assumirmos a responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que
seria inevitável não fosse a renovação e a vinda dos novos e dos jovens. A
educação é também onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não
expulsá-las de nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos, e tampouco
arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e
imprevista para nós, preparando-as em vez disso com antecedência para a tarefa
de renovar um mundo comum”.
Hannah Arendt
A citação acima me arrebatou.
Explico a razão. Educar no infinitivo é mais do que verbo não conjugado. É
verbo que impele à ação. Educar significa se comprometer com pessoas e com
processos. Quando se decide trabalhar com educação está em questão assumir
espécie de responsabilidade por conteúdos que poderão transformar pessoas,
poderão imobilizá-las ou simplesmente serão indiferentes. Coloca-se em pauta quais
conteúdos, que temas, quais métodos, com que finalidade, entre outras
perguntas. Então, educar assume contornos de missão e missão, no sentido da
vocação de que nos falou Max Weber. Como um comprometimento que é ontológico e
político, pelo qual se vive, em que se acredita. Onde mesmo que ontologia se
distingue de ideologia?
Isso nos leva ao segundo ponto, o
da decisão por amar nossos jovens educandos ao ponto de não deixa-los à mercê
de seus “próprios recursos”. Com isso, não imagino que Arendt tenha relegado os
recursos inerentes das crianças a um plano secundário. Mas penso eu que a filósofa
das palavras cirúrgicas tenha se referido ao fato de que o conhecimento
vivencial, aquele que se adquire no cotidiano, se não lapidado, permanece na
efetividade do estado bruto. Eu sou daquelas que pensa que a alfabetização não
começa aos 6 ou 7 anos, no 1º ano do primeiro ciclo. Para mim, a criança começa
a ser alfabetizada quando abre seus olhos, vê o mundo e lê as imagens que, aos
poucos, passa a nomear. Então, admito que ela tem dentro de si recursos,
muitos... Mas o ato de educar nos pede que oriente essa criança no processo de
ordenação desses recursos. Para que ela possa não apenas saber o que são ou
como funcionam, mas também que compreenda o lugar de cada coisa no mundo. Em
tempos de internet nos celulares, nos tablets, nos computadores e onde menos se
espera, não basta apenas a informação. Tem alguma vantagem quem sabe
interpretá-la.
Isso me leva ao terceiro, mas não
último ponto. Quão nobre é o educador sabedor de que ao dar importância para
algo que seu jovem educando traz como tema, como assunto ou, como interesse,
junto dele está aproveitando uma, talvez, a única, oportunidade para tal aprendiz
de tratar algo muitas vezes imprevisto, mas que de profunda relevância e, para
o qual essa pessoa em formação terá futuramente melhores condições de
conversar. Daí que educar é uma ação profundamente ligada aos valores do
humanismo e sempre no infinitivo.
Por fim, enganou-se quem pensou a
respeito do título do meu post que se
tratava de uma menção à noção religiosa de vocação, como resposta ao chamado de
alguma divindade. Não. Mas para não perder a chance de dizer a que esse blog
veio, faço aqui minha última consideração sobre a educação, inspirada em Arendt
e, pessoalmente, no objeto que move todos meus esforços de estudo: a religião.
O Ensino Religioso nas escolas da
rede pública é demanda da comunidade escolar: de discentes e seus entes
próximos, de docentes, de coordenações e de direções. É tema que excede os
currículos e conteúdos programáticos. É assunto que está na vida das pessoas e
que a todo tempo, em nossa sociedade brasileira, pede explicações. Seja porque
quer impor suas próprias vontades, seja porque coloca em questão aquilo com que
não tem afinidade, seja porque exige alguma sensibilidade, a fim de que seja
compreendido. Estudar religião não significa coadunar seus discursos, mas uma
esfera pública política, estrito senso, realmente democrática, necessita estar
pronta a escutar os discursos religiosos, compreendê-los e respondê-los,
negativa ou positivamente.
Os conteúdos religiosos estão nas
ruas, estão nas escolas, estão na TV e na Web. Ignorá-los não os fará
desaparecer da esfera pública. Os discursos religiosos atinentes para o bem da
sociedade civil e também os intolerantes estão em todos os lugares. É tempo de
não nos deixar iludir pela compreensão datada de que religião é assunto
doméstico ou da esfera da vida privada. É tempo de fazermos da escola o espaço
privilegiado de oportunidade para construção de um conhecimento sobre esse fenômeno
que seja capaz de não desperdiçar os recursos de nossos discentes, que seja
capaz de dar-lhes voz e espaço para perguntarem o por quê das coisas sem serem tolhidos.
Esse gesto, essa responsabilidade é dos educadores, das suas coordenações, das
suas direções, das secretarias de educação de cada município e cada Estado que
se quer em conformidade com o que reza a Constituição.
Portanto, a renovação de que
falou Arendt e que pleiteamos para as futuras gerações depende de discussão
agora. No tocante ao Ensino Religioso já se reconhece que há coisas demais
dentro disso que chamamos religião. Portanto, há muito o que saber sobre esse fenômeno.
Tais saberes revestidos de criticidade e autonomia das religiões, porque
afinal, é delas que falaremos – ora de dentro, ora de fora – é o que devemos querer
para nossos educandos e o que podemos fomentar junto deles nos espaços da
escola.
Elisa Rodrigues
"A educação é também onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não [...] arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós".
ResponderExcluirCrianças e jovens são FORMADOS, postos na forma, nos espaços institucionais da educação e religião. Parece paradoxal esperar o novo e o imprevisto a partir da forma, não?
Bom texto, Elisa!
Oi Valéria! Entendo seu desconforto com a ideia de forma. Acho mesmo que não é boa, mas seria como pensarmos uma educação sem fundamentos. Seria possível isso? Acho que ao dizermos que pretendemos formar nossos educandos, estamos nos referindo a uma escultura que pouco a pouco vai aparecendo aos olhos de quem a esculpe de um jeito, mas que pode ser vista e entendida pelos outros de diferentes maneiras. As formas desenhadas não são eternas, principalmente, quando se é jovem. São mais indicadores, indícios, marcas que ficam e que sinalizam caminhos. A decisão de segui-los ou não será dos alunos, das obras de arte, abertas, suscetíveis ao tempo, às intempéries da vida... Eu tenho marcas dos meus educadores. Algumas boas, outras nem tanto. Mas aprendi com elas e tomei meu rumo. Acho que é mais ou menos isso...
ExcluirBeijo,
Elisa
Este comentário foi removido pelo autor.
Excluir“Vocação é algo que, depois de descoberto, me impulsiona a viver."
ResponderExcluirOuvi isto certa vez de um amigo, Calebe, que é missionário protestante no Marrocos e ali também atua em projetos de cunho social.
Apesar de ser ele um religioso e ao afirmar isto ter como pressuposto a chamada divina, percebo também que sua concepção é bem próxima da que falou Max Weber, citado no texto. Uma junção que me atrai, pois é justamente o que penso sobre a vocação religiosa, ela não contempla apenas o "vertical", mas também o "horizontal". Portanto, vocação tem haver com nossa missão neste mundo e é sim um comprometimento ontológico e político, do qual se está disposto a qualquer ônus para se concluir, algo que está claro nas palavras de Martin Luther King Jr., homem que cumpriu sua vocação e me serve de grande exemplo:
“Se você não tem uma razão pela qual morrer, você também não tem uma razão pelo qual viver”.