Os demônios no Planalto Central

Bolsonaro e a primeira-dama, Michele Bolsonaro em culto realizado na Igreja Batista Lagoinha (Belo Horizonte-MG). Foto: Videopress Produtora
Sem fazer segredo das suas crenças, Michelle Bolsonaro, atual primeira dama e, Damares Alves, Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos de 2019 a 2022, acusam a presença de demônios no Planalto Central. Eles habitariam a cadeira do atual presidente, a cozinha da residência presidencial e outros espaços do palácio, por onde passeariam livremente desde outros governos. Sabidamente, dos governos petistas, vermelhos e comunistas. (Na foto, Bolsonaro e a primeira-dama, Michele Bolsonaro em culto realizado na Igreja Batista Lagoinha em Belo Horizonte-MG. Imagem: Videopress Produtora)

As mulheres de Bolsonaro não apenas identificaram esses demônios, como também executaram cerimônias de expulsão desses espíritos maus aos exorcizá-los com orações fortes, em nome da consagração desses espaços a quem de direito, de cordo com o que acreditam, Deus. E con-sagrar é nada mais que “estar com” ou “dedicar totalmente algo” ao sagrado, ou pelo menos a algo que se julga sagrado. No caso de Michelle e Damares seria entregar ao Deus cristão algo que o próprio presidente atual afirma pertencer a Deus, isto é, o poder sobre o Estado e a população brasileira. Nesse sentido, vale o uso de uma expressão bastante recorrente entre pentecostais: restituir. No léxico cristão pentecostal, exorcizar o demônio de algo ou alguém, bem como consagrá-lo a Deus equivaleria a restituí-lo ao sagrado que por natureza seria seu dono.

Pode parecer curioso que uma primeira dama dedique-se à atividade religiosa de exorcizar a cadeira do presidente. A mídia em geral tende a descrever isso como coisa de gente maluca. E entre o público evangélico não há consenso sobre isso. Pergunta-se se um demônio poderia habitar um objeto inanimado? E, se demônios não estariam mais a fim de possuir pessoas ao invés de coisas?

Esse é de fato um problema teológico que não nos cabe resolver aqui nesse breve texto. Mas penso que basta dizer que na maioria das vezes, demônios parecem gostar mais das pessoas do que das coisas. No entanto, quando algumas pessoas são possuídas pelo diabo, ele e seus demônios costumam tomar para si não apenas essa vida, mas também as gentes da família, coisas e propriedades ao seu redor. Para os cristãos pentecostais isso é entendido como maldição e considerada geracional, isto é, passa de geração em geração, de pais para filhos e filhas. Daí que para “quebrar a maldição”, o diabo e seus demônios precisam ser repreendidos e expulsos, a fim de que Deus recupere aquilo que é seu por direito.


A gente pode entender com isso que Deus não está disposto a dividir o que considera seu com outro, especialmente se esse “outro” for algum tipo de entidade espiritual. Guarde essa informação, retomarei isso posteriormente.

No Planalto Central, a cadeira do presidente é um símbolo de autoridade e ocupa-la significa ter poder. Todo o ritual cívico de posse da presidência, com o desfile pelas ruas de Brasília, a subida da rampa do Planalto Central, a passagem da faixa presidencial e o primeiro discurso do chefe da nação é uma tradição (moderna) de demonstração de poder. O poder investido em alguém em que se deposita a expectativa de um governo que favoreça a todos e todas de uma nação. Mas quando esse governo não representa a totalidade da sociedade e esse grupo sente-se ameaçado, passa a pesar sobre o novo governo a alcunha de perigoso. Perigoso pelo menos para uma parcela da sociedade. De certo modo, isso ocorreu quando a faixa presidencial foi passada para o governo Lula nos idos anos 2000. Enquanto uma parcela do povo depositou neste governo a expectativa de dias melhores, outra parte do povo sentiu-se ameaçada. E essa ameaça foi aos poucos sendo chamada maldição. Como se o poder tivesse sido corrompido e depositado em mãos indignas: as mãos do outro lado, as mãos “deles”. Assim, desde não muito tempo atrás a divisão entre “nós” e os “eles” foi se tornando cada vez mais real, cada vez mais natural, ao mesmo tempo em que o pentecostalismo crescia no Brasil, do ponto de vista quantitativo, mas também como uma força cultural nas rádios, na TV, nos jornais, nas mídias sociais etc.

Também nesse período foi se tornando menos incomum ou, talvez, menos errado, falar em voz alta o que em segredo se pensava em restritos círculos sociais, tipo: existem pessoas melhores que outras, pessoas negras não importam, tampouco indígenas; a pobreza é parte do desenvolvimento econômico, privilégios não são para todas as pessoas, educação, saúde, cultura e lazer também não. As entidades e divindades das “outras” religiões são primitivas, assim como suas crenças e rituais. Essa coisa de diversidade sexual, de gênero e de identidades não é de Deus, não do Deus cristão. Tudo isso somente começou a existir por causa desse governo, corrompido e indigno. Governo amaldiçoado.

Conforme esse entendimento, então, faz sentido que a primeira dama quebre a maldição dos governos antecessores imorais porque comunistas e restitua a Deus o país, o Estado e a sociedade que lhe pertence. Faz sentido pra ela, faz sentido para o povo pentecostal que a segue de perto, faz sentido para Damares e seus seguidores. Resta saber se faz, de fato, sentido para Bolsonaro, para seus ministros, para algumas lideranças religiosas, para os militares que o apoiam e para setores do agronegócio, por exemplo. A quem interessa quebrar essa maldição, a maldição comunista? A quem interessa e importa eliminar a ameaça que “o(s) outro(s)”’ representam? E para quem, de fato, esses “outros” seriam ameaça?

Penso que vale questionar o quanto Bolsonaro está comprometido com essa lógica, a pentecostal. Questionar se é uma lógica válida ou não, bom, isso não deveria ser a questão central, visto que é uma forma de se interpretar e se orientar no mundo. Mesmo que não concordemos com ela. Ela existe e numa sociedade democrátia é pressuposto que existam diferenças. Penso que uma pergunta válida seria se Bolsonaro compartilha tal lógica ou a instrumentaliza?

Lembram da informação que pedi acima que guardassem? Vamos ao desenvolvimento dela.

No Brasil, quebrar maldição, tirar o mal, expurgar o coisa ruim, exorcizar o demônio, repreender o diabo... “cruz credo”, é costume que pertence a muito mais gente do que se pode imaginar. Isso é coisa de um Brasil mágico, de gente que acredita em poderes, em espíritos e em coisas que a razão não dá conta. Isso meio que atravessa o “nós” e o “outros”. Haja vista a resistência à vacina e à ciência que aprisionou muitas consciências amedrontadas nesses tempos pandêmicos. Na hora do medo quanto ao que se desconhece, entram as religiosidades com suas respostas sobrenaturais. E, nessa hora, o pensamento mágico não é somente coisa das pessoas sem cultura ou educação, tampouco somente das pessoas pentecostais. Ele vive sob distintas formas no catolicismo popular, nas renovações carismáticas, no espiritismo kardecista, nos esoterismos, nos misticismos e nas distintas formas de religiosidade, às vezes, disfarçadas de nobres filosofias, as quais independem da classe social. A crença na magia organiza o universo de muita gente e, para cristãos pentecostais, se não for a magia do Deus cristão, a magia dos outros engana, rouba e destrói. Por isso, precisa ser expurgada e destruída.

Então, é isso: o Deus cristão não sabe lidar com concorrência. Cristãos pentecostais, em geral, não sabem lidar com as alteridades. Nisto, Bolsonaro parece compartilhar genuinamente a lógica pentecostal. Ele não admite perder a autoridade, tampouco o poder. Ele quer ser unânime, embora não seja. Ele diz responder aos anseios do povo, embora somente esteja atendendo as pessoas que compõem seu círculo mais próximo. Por isso, a exorcização do Planalto, por isso, as fieis mulheres de Bolsonaro “intercedem por ele em oração”. O simbolismo disso tudo é muito forte. É real. E pode interferir de modo real nas próximas eleições.


Elisa Rodrigues
Doutora em Ciência da Religião e em Ciências Sociais. Professora no Departamento de Ciência da Religião na Universidade Federal de Juiz de Fora.


Comentários