Desse tempo que tenho percorrido o trajeto dos estudos de
religião, seja pesquisando-a na literatura, seja em campo, uma coisa pelo menos
ficou clara para mim: a religião é algo que faz as pessoas perderem as rédeas.
Umas porque a seguem, outras porque a odeiam. Há aqueles que seguiam alguma,
mas se distanciaram. Há os que se distanciaram da instituição, mas que mantém
laços afetivos. Os que não têm laço afetivo, mas querem entender os que têm. Os
que seguem alguma religião, mas a odeiam. Os que simplesmente seguem e nunca se
perguntaram a razão. Alguns que por terem se perguntado, deixaram de
seguí-la... Têm os profissionais, têm os leigos. Enfim, há muitos que, como
ouvi certa feita, têm a "religião no estômago". Engraçado é observar
que dentre esses tantos, a religião faça algum tipo de cócegas tão incômoda ou
tão agradável, que não possa passar desapercebida! Razão pela qual, talvez, não
possam deixar de falar dela ou, ao ouvirem alguém dizer algo, não podem deixar
de se pronunciar a respeito!
Sou levada a crer, então, que uma pessoa que passa parte do
seu tempo pensando em como desarticular um discurso religioso ou, um discurso
sobre o religioso, só pode ter sido atingida por ele. Não dá para deixar
passar. Se alguém falou mal da sua mãe, tem que revidar. Não é assim? Eu vejo
essa necessidade de discutir religião positivamente. Considero que se ela
aparece é porque importa, ou seja, porque demanda. E, se demanda discussão é
porque há o que perguntar, há o que conhecer, há o que criticar, há o que
desconstruir e, finalmente, o que reconstruir.
Por isso, para mim, discutir religião não é algo que está em
voga. Atrevo-me a dizer que sempre esteve e isso, possivelmente, porque embora
falemos dela, falemos a partir dela e, constantemente, dela façamos juízos, com
certa frequência quando a tematizamos lhe tomamos como coisa auto evidente.
Isso não é lá muito bom, pois há tanto conteúdo numa religião - histórico,
simbólico, político-ideológico, estético, midiático, cultural, econômico e
outros - que penso ser uma tarefa hercúlea tecer qualquer reflexão sobre
religião que não a reduza num ou outro aspecto. Aliás, todo esforço é pouco
para o tratamento desse tema, mesmo que alguns pareceristas-especialistas achem
que tudo já foi dito, que fulano já tratou esse assunto, beltrano já escreveu
sobre isso. Enfim, que há bibliografia disponível sobre isso ou aquilo e que o
tema foi esgotado. Asneira! Nunca me conformei com gente que diz "esse assunto
foi liquidado nos anos 1950.... ou 1960, ou 1970". Eu gostaria de saber
como se liquida um fenômeno sócio-cultural, flexível ao tempo, aos diferentes
lugares, às diversas e novas formas de sociabilidade? Só porque alguém fez uma
boa reflexão sobre um tema significa que não podemos retomá-lo? Não sei, fica
aí a dúvida.
Mas meu interesse aqui é outro. Meu ponto é que toda
discussão sobre religião parte de supostos. Estando o analista dentro ou fora
de uma religião. Sendo ele religioso ou não. O acadêmico pode elaborar um
valoroso trabalho de pesquisa sobre um objeto relacionado à religião, sem ter
pisado "no campo". Ele pode ter tido cuidado no uso das palavras, se
esmerado na construção do texto, comparado diferentes argumentos, pode mesmo
ter se esforçado em fazer uma pesquisa honesta porque não tendenciosa. Mas se
ele escolheu tal objeto não haveria aí um impulso, uma inclinação pelo tema
religioso que de alguma forma poderia expressar um comprometimento? Como ele
chegou até o momento da construção desse objeto? Insisto: a religião lhe fez
cócegas!
O que escrevi acima não é o mesmo que dizer que somente a
religião faz isso com quem se envolve com ela. Há por aí quem se doutore em
artes, porque se deixa afetar por elas. Quem estude esportes, porque é dado às
atividades físicas. Quantas pesquisas sobre gênero, orientação sexual e
direitos reprodutivos têm sido elaboradas nas últimas décadas por pesquisadoras
mulheres diretamente interessadas no tema? O interesse as desqualifica? O
interesse ou uma aproximação com o tema pode irredutivelmente descredenciar uma
pesquisa? Parafraseando um importante pensador da teologia do século 20, R.
Bultmann, proponho o que julgo ser uma pergunta mais honesta: “existe pesquisa
sem premissas?”.
Continua...
Simplesmente ótimo!!!! Quanto mais se afirma a utopia da imparcialidade da pesquisa, mais distante a imparcialidade fica. Mais prudente é o reconhecimento dos interesses, das premissas e a partir disto buscar os cuidados para não ser tendencioso, mas honesto, transparente.
ResponderExcluirSim!!! Com certeza a religião faz cócegas...
Além de quê, acho necessário dizer, quando se exalta a imparcialidade como algo imprescindível à pesquisa, o que se propõe entrementes é uma espécie de clivagem política entre aqueles autorizados a falar sobre religião, porque cientistas e os que não podem elaborar uma fala sobre religião, porque religiosos. Quem ou o quê legitima um em detrimento do outro? Se é o arcabouço teórico-metodológico que qualifica um pesquisador (sobre qualquer tema), não importa qual a sua crença ou descrença, sua ideologia política ou falta dela, se tem alguma militância ou não! Importa é a maneira como cosntruirá o objeto e como o analisará, segundo os instrumentos metodológicos que mobiliza para a sua pesquisa...
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