A religião faz cócegas - Parte 2






Se dissermos a respeito da religião que se trata de um discurso típico de mentalidades obscuras, superado desde a passagem da Idade Média para a Modernidade, não estaríamos incorrendo o erro de pensar religião increvendo-a unicamente dentro dos limites daquele tempo, daquela Europa medieval impregnada de misticismo, como se conceito e fenômeno religioso somente pudessem ser compreendidos no interior dessas fronteiras?

O curioso é que eu não sei se isso é feito porque faltam recursos reflexivos para que essas fronteiras sejam extrapoladas ou, se as opiniões que se orientam por essa perspectiva, o fazem na esperança de com isso conseguirem fixar um lugar claro, definido e exclusivo para enfeixar a religião. É como se ao bani-la para o reino do mudo medieval, pudéssemos respirar aliviados, já que o retrocesso, a direita, os discursos antiquados e tradicionais ficariam ali inscritos, delimitados, confinados. Não sei, fica aí mais uma dúvida...

Em contrapartida, aqueles que elegem a Ciência (com “C” maiúsculo) como benfeitora mor ou resultado objetivo do avanço do pensamento humano, que dispensa deus e a fé, quando o fazem sem mínima crítica ou senso de limite, apenas repõem a lógica da religião – diga-se de passagem, das que se pretendem universais – na medida em que substituem uma meta-narrativa por outra. Em outras palavras, o Ente absoluto que legislava a vida da humanidade concedendo-lhe regras e sentidos nos quais deveria se acreditar e cegamente seguir, antes, chamado deus (o Sagrado, o Transcendente, o Sobrenatural etc.), se torna na modernidade, a Ciência, essa tão absoluta, tão irredutível, tão soberana – para não dizer ora abscondida, ora revelada – quanto o sisudo deus judaico-cristão.

Pergunto eu: que vantagem Maria leva, se a emancipação desse deus nos conduz a um novo ídolo? Então, o cientificismo e o discurso positivista quanto ao progresso do pensamento humano e das instituições sociais não seriam, estruturalmente, tão religiosos quando o discurso cristão da segunda vida de Jesus e da realização do reino de deus na Terra?

Sei não! Mas esses homens que se converteram ao Iluminismo ontem me parecem bem pouco emancipados da ideia de salvação.

E para não deixar brecha aberta, ou pelo menos tentar, o que eu disse acima é bem diferente do que, acuados, alguns cientificistas desferem como argumento de refutação: “Ah, então deixemos nossas mulheres morrerem nos partos normais ao usarem cavernas ao invés de leitos higienizados de hotéis, ops, hospitais!” ou “Deixemos que as pestes se espalhem e assolem a humanidade. Vamos abolir os antibióticos!” e, por fim, “Voltemos ao estágio da bárbarie!” (Essa última, de uma perspectiva positiva da história gritante).

O que quero dizer é que não se trata de eliminar a crítica ou desvalorizar a razão. Tampouco voltarmos ao universo das explicações cosmológicas da religião. Trata-se mais de usar o próprio critério da dúvida sistemática para relativizar os juízos da razão sobre aquilo que ela quer desqualificar tão irremediavelmente. Não teria algo de positivo a religião? Por que ela continua a fazer cócegas como se fosse um monte de pequenas mariposas voando dentro do estômago da gente?

Eu realmente penso que a religião é um fenômeno sociocultural que necessita ser entendido na melhor perspectiva compreensiva, a fim de que possamos 1) reconhecer o papel que exerceram para a construção de princípios que forjaram a base da modernidade, 2) mensurar as consequências de seus discursos, 2) localizar seu lugar nas sociedades modernas, 3) elaborar estratégias racionais de diálogo, que ordenem os embates públicos com essas agências e suas demandas e, por fim, 4) estabelecer limites para que elas exerçam seu direito de fala, mas também seu dever de escuta.

Nesse sentido, todos necessitamos ser educados para sabermos quais são os limites de ação social e política que cada um, religioso ou não, tem. 

"Os secularizados não devem negar potencial de verdade a visões de mundo religiosas" 
Jürgen Habermas 
Folha de São Paulo, São Paulo, domingo, 24 de abril de 2005

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