Quando ideias se tornam perigosas


Se defendo, por um lado, o direito dos religiosos de participarem, intervirem, opiniarem e lutarem por suas convicções no âmbito da esfera pública, não o faço porque seja simpatizante. Faço porque sou cidadã, porque entendo que um Estado de direito, democrático e laico supõe a participação de todos cidadãos em pé de igualdade e porque reconheço que a religião faz parte da construção histórica e política desse país, assim como o é hoje. Mais do que isso: penso que se quisermos dar prosseguimento ao processo de construção dessa democracia, precisamos fazer valer radicalmente a ideia da esfera pública como espaço de comunicação entre diferentes e divergentes representações sociais. Nesse tocante, então, cabem as religiões interessadas no debate público, aberto e respeitoso de suas demandas.

Contudo, por outro lado, o que disse acima não me desvia de outro suposto igualmente relevante: a participação de religiosos na esfera pública deve ser feita segundo as regras dessa estrutura. Isso significa não apenas apresentar demandas, mas também saber ouvir as demandas dos outros e, quando preciso, acata-las. A dificuldade de alguns religiosos em comportar-se adequadamente no debate público, ao meu ver, tem relação com o revestimento exclusivista dos seus discursos. Especialmente, os religiosos de matriz cristã (católicos, protestantes e pentecostais) acostumados a proclamarem e se comportarem no debate, como se estivessem em seus altares e púlpitos, isto é, desferindo verdades universais que, "em verdade, em verdade vos digo": são verdades particulares, que não interessam a todos!

Sobre isso, quero me deter mais. Por verdades particulares, entendo justamente as convicções calcadas em princípios, valores e juízos morais (do que seja certo, do que seja errado) que estruturam as concepções de religiosos quanto ao que consideram sobre como viver, como conviver socialmente, o que aceitar, o que negar, em que pautar suas ações e reações sociais. Essas verdades particulares são elaboradas com base em dois fundamentos: 1) crença (ou fé) e 2) códigos de usos e costumes. Acontece que a fé não precisa de argumentos da razão científica para se nutrir. Ela é, como dizem, da ordem da experiência religiosa e, portanto, imbuída da subjetividade e da vivência do religioso na sua relação com a divindade (já disse em outros lugares que a experiência religiosa é constituida de duas dimensões, a simbólica e a social, vide: http://periodicos.pucminas.br/index.php/interacoes/article/view/6375/6245). Segue-se a isso que usos e costumes estão associados aos dogmas, esses, resultam da tradição ou da interpretação da tradição (oral e ou escrita) que cada religião possui (Importante: comunidades religiosas, cujas tradições são orais e não escritas são, sim, religiões. Não importa se estão registradas na forma de livro ou não). Os dogmas são, para quem crê neles, inegociáveis. Noutros termos, axiomas da fé. Ora, aí se instaura o impasse.

A esfera pública, porque é estruturalmente democrática e norteada por discursos racionais, não pode admitir falas, opiniões e disposições que não estejam dispostas ao diálogo e à mudança, em favor do bem da maioria. Sabendo que: o bem da maioria diz respeito aquilo que constitu a base do pacto pelo bem-estar-social. Pacto entre Estado e sociedade civil. Pacto pelo qual as instituições sociais (inclusive as religiosas) devem trabalhar. Com isso, não estou propondo que os discursos religiosos sejam irracionais, mas proponho que são norteados por uma racionalidade quanto a fins, que se baseia em códigos específicos da sua própria religião. No caso de cristãos, o código de orientação se pauta necessariamente pelo que diz a Bíblia. E, nesse tocante, a Bíblia reúne uma diversa qualidade de textos que contém desde prescrições de ordem moral até narrativas biográficas, apocalipses, poesias e outros. Todos, produzidos "para" e "por" um povo que viveu há mais de 2 mil anos, inscritos numa cultura e língua profundamente diferentes da nossa e inspirados, segundo modelos de sociedade, de família, de economia etc., igualmente, diferentes do que pede o nosso tempo e que estão disponíveis em nossa realidade.

Por hora, para encerrar esse post, quero afirmar que: muito provavelmente o que foi interpretado como abominação, naquele tempo, naquela cultura e para aquelas pessoas descritas na Bíblia, hoje, não tem base para ser da mesma maneira interpretado. Daí que as ideias - mesmo as religiosas - precisam ser contextualizadas, antes de serem proclamadas como verdades. Caso contrário, se defendidas como exclusivas, não passarão de ideologias alienantes, unilaterais e opressoras. Uma verdade que escraviza.

Continua...

Por Elisa Rodrigues
25 de maio de 2014. 

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