Esse post vai em duas partes, uma fruto de inquietação teórica e, outra,
de inquietação metodológica. Vejamos se serei bem sucedida nesse meu esforço de síntese
Algo da abordagem do fenômeno religioso
pela Ciência da Religião deve ser pensado com cautela. Primeiro, porque é necessário
precisar o que entendemos por fenômeno quando empregamos esse termo. Segundo,
porque dizer que a abordagem metodológica da Ciência da Religião quanto ao
religioso, prima pela compreensão dos processos de atribuição de sentido pode
nos conduzir a um problema, qual seja, o do menosprezo à dimensão sociopolítica
do discurso religioso. E essa não é uma dimensão que se possa dispensar,
convenhamos.
Já esclareci em meu primeiro post que não sou militante de nenhuma
religião, mas tomo esse espaço para problematizar questões relativas ao fenômeno
religioso que temos discutido em sala de aula com nossos discentes, dentre as
quais, destaco: o lugar que as religiões têm ocupado no âmbito da esfera
pública e as ações que elas têm implementado, em favor de suas crenças (leia-se
ideologias) ou, em resposta às demandas que emergem da sociedade
Pois bem, uma definição mais concisa
e mesmo simplória sobre fenômeno apontaria para sua acepção, como aquilo que
aparece e que pela sua natureza autônoma pede compreensão. Um fenômeno que se
reconhece pela sua notoriedade, pelo seu potencial de mobilização e pela capitação
de atenção. É algo em torno do qual orbitam esforços de compreensão, muitas
vezes, por motivos que excedem a racionalidade científica. Um fenômeno tem
implicações que se espraiam pelas esferas sociais, seja da vida pública, seja
da vida íntima. O fenômeno sobre o qual se debruça a Ciência da Religião é isso
que aparece, que solicita atenção, compreensão, que mobiliza e que excede os
discursos científicos, baseados em critérios exclusivamente cartesianos. Ousamos
dizer, como ponto de partida, que o fenômeno religioso é isso que articula
pessoas de diferentes cortes geracionais, etnias, orientações sexuais, classes sociais
e outras clivagens, a pensar misticamente e agir ideologicamente, conforme
códigos de conduta nem sempre consoantes à vida moderna.
Até aí, novidade alguma. Contudo,
alguém que menospreze o que esse nível de articulação e mobilização dos
indivíduos apresenta em termos de centralidade, para que possamos compreender
socialmente algumas condutas, ações políticas, alianças e interesses, é alguém
pouco informado sobre o que é religião ou, no mínimo, alguém que não lê nas
entrelinhas da história da formação do nosso moderno e laico Estado democrático,
a penetração dos discursos religiosos, ora em desacordo com os rumos da jovem
República, ora na forma de alianças que poderiam beneficiar aristocracias,
partidos políticos, pessoas e, claro, a própria religião, na forma de uma ou
outra instituição. Nesse sentido, não estamos nos referindo a discursos tão obscuros,
bestializados, ignorantes assim. O discurso religioso é na verdade bem “ilustrado”.
Então, sim, a religião é discurso
por meio do qual os crentes atribuem sentido a sua existência. Sim, é
importante reunirmos instrumentos teóricos e metodológicos que nos subsidiem na
tarefa de observar, comparar e analisar o religioso. Sim, as religiões sustentam
ideias (doutrinas) que muitas vezes contradizem as liberdades individuais. Não
nego nada disso. Mas, quero enfatizar que pontos de vista engessados sobre a
religião, que a releguem a papéis marginais na nossa história recente, por meio
de perspectivas reducionistas marcadas por uma herança acadêmica francesa
distante dos trópicos, somente tendem a deixar de lado algo da religião que não
é apenas sentido, mas é ação, prática, formação de disposições e orientações
específicas, para condutas em sociedade, na política e na cultura.
E aí não dá para simplificar. Não
tem como dizer que religião não é matéria significativa. Ela é algo que aparece, que cativa e
que mobiliza as pessoas. Ela tem uma atuação que precisa ser regulada, mas que,
concomitante, exige ser reconhecida. Há nela uma força que longe de ser
sobrenatural, transcendente ou sagrada – para usar todos os termos que os
laicistas odeiam – é social, pois possui um papel central de relevância para a
construção de uma sociedade civil igualitária, de valores humanistas e
consciente do seu dever moral de respeito às diversidades, sejam elas quais
forem. Assim como o Estado e suas instituições públicas não podem banir as
religiões e seus discursos das esferas decisórias, as escolas e seus educadores
não podem se dar ao luxo de não tematizarem o lugar da religião num Estado
moderno, democrático e laico. Os cidadãos necessitam desses subsídios, se
pretendemos uma formação plena e crítica para todos, conforme prescreve a Carta
Constituinte de 1988.
Em São Paulo, uma paróquia [http://www.missaonspaz.org]
abriga centenas de imigrantes haitianos que chegam todos os dias em busca de
uma vida melhor. Em instalações improvisadas que poderiam abrigar 15 pessoas,
eles hospedam cerca de 200. Oferecem alimentação, servida por voluntários,
encaminham os imigrantes para vagas de emprego, além de orientarem no que diz
respeito à documentação e inclusão social. Enquanto os governos do Estado de
São Paulo e do Acre se perdem em discussões políticas e eleitoreiras sobre o
destino desses imigrantes, na chamada crise migratória, é uma igreja filiada a
uma religião que providencia solução para uma demanda social específica e
urgente. [Para saber mais sobre a “crise migratória”, veja http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2014/04/140425_haitianos_entenda_jf.shtml].
Não é cinismo demais dizermos que
o lugar da religião é a esfera dos assuntos privados, que se trata de assunto
pessoal, que não deve interferir na política quando, efetivamente, é ela quem
chega, por vezes, onde os olhos do Estado (União, Estados da Federação e Municípios) somente
passam de soslaio?
Então,
é isso! Vamos continuar alardeando que religião é coisa de obscurantismo. O Estado é laico mesmo e não deve se meter
nesses assuntos. Mas, é permitido a elas, às religiões e seus discursos, que
façam caridade, afinal, é isso que cabe à religião mesmo. Simples assim.
Operários, de Tarsila do Amaral (1933)
Segunda Classe, de Tarsila do Amaral (1933)
Elisa, o seu texto é primoroso! Eu concordo, admiro e finalmente agradeço. Simples assim. Você disse lá em cima que estava exercitando sua capacidade de síntese e quer saber? Isso foi sintético! Foi direto ao ponto! Foi como uma lança uma agulha, uma flecha que sabe exatamente o que é o alvo. Negam a dimensão social porque se a admitissem, admitiriam algo que pretendem esconder, ou seja, a ferramenta que é a religião. E assim como uma técnica bem aplicada, os resultados são sempre empíricos! Eu admiro você porque tenho a dificuldade oposta à sua. Eu tenho dificuldade de explanação. Talvez eu seja sintética demais. Sempre quero aprender com você. Beijos!
ResponderExcluirCarolina (Carol), obrigada pelo elogio. Espero que as reflexões aqui expostas (e que me expõem também) nos ajudem a pensar a religião para além dos limites dos discursos religiosos e dos discursos acadêmicos que se dizem "isentos" de interesses, mas, às vezes, tão reducionistas quanto as falas dos religiosos.
ExcluirBeijo,
Elisa