O abominável discurso religioso da “abominação”


Um caso 

Eu era ainda uma jovem de 20 anos, quando conheci Marcela*. Uma transsex que saíra de uma cidade do interior de São Paulo para estudar e trabalhar na capital. Ela atendia pelo seu nome de batismo quanto nos conhecemos, mas pouco a pouco foi se transformando, de acordo com aquilo que ela sentia e sabia ser a sua identidade. Um dia fomos juntas ao cinema. Eu podia notar que à medida que passávamos algumas pessoas a mediam com horror. Olhavam-na de soslaio e sussurravam coisas. Era já o começo dos anos 2000. Caminhávamos na Paulista em direção a Rua Augusta. Naquele dia assistimos a um belíssimo e doloroso filme intitulado Boys don’t cry (Meninos não choram), dirigido por Kimberly Pierce e lançado em 1999 (Ver sinopse em: http://filmesnobrasil.wordpress.com/2013/05/25/filme-meninos-nao-choram-boys-dont-cry/). Antes disso, em conversa com Marcela perguntei-lhe certa vez o que ela sentia a respeito de si mesma. E ela me disse com muita sinceridade: “Sinto que existe uma mulher dentro de mim. Não suporto mais prendê-la. Tenho a impressão que vou morrer com essa sensação de sufoco”. Por isso, Marcela deixou sua cidade Natal. Por isso, viera para São Paulo. Ela era estudante de um curso de Letras e trabalhava comigo numa biblioteca para sustentar-se longe da família que, embora a amasse, não podia compreender o que se passava com ela. Assistimos ao filme. Eu do meu lado sofria com o desespero da personagem e Marcela do seu lado, chorava discretamente. Ao sairmos em silêncio, ela disse-me após uma longa caminhada: “Aquela dor do filme, eu conheço bem... A humilhação, a incompreensão, a violência. Já passei por tudo isso!”. Então, pela primeira vez em minha vida, eu me perguntei se aqueles que torturavam minha amiga com palavras e gestos tão estúpidos e agressivos não eram as criaturas mais abomináveis da terra?

Dois casos 

Quase uma década depois, eu estava na mesma cidade “civilizada” quando assisti, infelizmente, um episódio de intolerância. Numa rua movimentada do centro de São Paulo, dois amigos conversavam: João e André**. Um deles era gay, o outro não. Eles riam descontraidamente, como é típico dos jovens. Até que um deles, João, tocou o rosto do outro. O gesto carinhoso, recebido naturalmente pelo amigo foi interpretado por alguém que passava na rua como aberração. E de pronto, o transeunte que nada tinha a ver com a cena dos amigos colocou-se a vociferar contra os rapazes, expurgando todo o ódio que tinha em si por eles, amaldiçoando-os, dizendo coisas e fazendo gestos de raiva incontida. André tomou as dores do amigo e desejou responder, mas o amigo o segurou pelo braço e disse: “Deixa pra lá. Não vale a pena! Eu passo por isso sempre. Já estou acostumado... Vamos, vamos...”. E puxando o amigo, colocaram-se a caminhar. A dor, a humilhação, o ódio e a incompreensão que aquela cena revelava nunca saíram da minha mente. Ao anoitecer, eu ainda podia ouvir os gritos daquele criminoso. Eu podia ver a sua face transfigurada pelo ódio. Eu me sentia chocada e nada mais podia fazer, a não ser chorar.

Ser abominável

Eu não sei, objetivamente, o que é viver com o peso dessa designação sobre os ombros. Eu não sei, mas posso imaginar, o que é ser chamado de pessoa abominável ou aberração. E porque posso mensurar o quão dolorosa é essa situação, me sinto na obrigação e responsabilidade de dedicar algumas linhas ao tema religião e homossexualidade. Antes, porém, alguns pressupostos do meu olhar.

Primeiro, no judaísmo antigo o mundo espiritual e o social orientavam-se a partir de certo esquema classificatório fornecido pela religião, que dividia o mundo entre puro e impuro, bem e mal, certo e errado. Segundo, esse esquema binário não suportava nada que não pudesse ser enquadrado dentro dele. Esse esquema não acatava a ambiguidade, a ambivalência, ou o que se colocasse entre uma polaridade e outra [1]. O que está no entre-lugar. Assim, o que não se classifica é o abominável. E o abominável se lança fora, porque o abominável não pode ser tolerado no arraial de Iahweh. Daí que todo abominável necessita ser destruído, para que não revele a contingência do classificatório, sempre tão esquemático, duro e finalizado. Aliás, sempre perfeito como é quem criou esse esquema: o masculino  e violento Iahweh. [Falo um pouco desse esquema classificatório num texto que publiquei há alguns anos. Acesso em: http://www.oracula.com.br/numeros/022005/artigos/41rodrigues.pdf].

Mais cenas reais

Há alguns dias, exibi para meus alunos o filme For the Bible tells me (Porque a Bíblia me diz assim), lançado em 2007. O filme pode ser visto no canal Youtube (Acesso em: http://www.youtube.com/watch?v=smLfD8Du7PI) e seu conteúdo é, sem dúvida, desafiador para cristãos, especialmente, os evangélicos, que acreditam que a homossexualidade é condenada pela Bíblia como abominação diante de Deus. Seis famílias de formação cristã, engajados com a vida da igreja e verdadeiramente interessados em seguir o que diz a Bíblia, contam suas histórias sobre como lidaram com a homossexualidade de seus filhos e filhas, tão bem criados à luz do que dizia a Bíblia. Não contarei o filme, mas penso que ele representa uma honesta oportunidade de reflexão sobre os argumentos utilizados pelos religiosos para condenar gays e lésbicas, bem como justificar ações de ódio e intolerância. Se você é crente, assista-o. Se você não é, assista-o! Pois, dentre outras coisas, esse documentário leva-nos a perguntar o que é sentir-se abominável e o que essa sensação pode acarretar em termos de danos psicológicos e emocionais para um ser humano.

Porque a Bíblia me diz assim...

Do livro do Antigo Testamento denominado Gênesis (capítulo 19, especialmente verso 5), emerge uma das referências bíblicas usadas para afirmar que Deus abomina, no sentido de odiar, a homossexualidade. Trata-se da narrativa em que Ló, primo de Abraão, recebe e hospeda em sua casa, que ficava em Sodoma, dois anjos. A narrativa diz que após terem ceado, a casa foi cercada por homens que exigiram que os anjos fossem entregues a eles, pois queriam “conhecer” os homens. Embora não seja especialista em hebraico, uma olhada rápida em alguns léxicos propõe que o termo hebraico (yada’) traduzido na Bíblia como “abusar”, tanto na versão de Jerusalém (geralmente usada por católicos), quanto na versão traduzida por João Ferreira de Almeida (essa preferida por evangélicos), abriga os sentidos de fazer conhecer, conhecer, revelar e, entre outros, coabitar. O que, para fazer justiça, é usado na Tradução Ecumênica: “Faze-os sair para nós, para que os conheçamos”. É sabido entre os exegetas que esse “conhecer” pode ser o mesmo que coabitar, isto é, contrair coito. Mas não é impossível que o sentido da narrativa seja tão somente o de conhecer, ou de revelar, aqueles dois anjos – também chamados no capítulo 18 de homens e em número de três – que estavam na casa de Ló. A ambiguidade desse texto, portanto, não nos fornece base segura para afirmarmos a “degeneração” da cidade promovida pelo sexo entre homens que a teria conduzido à destruição. O que fica claro, desde já, é que o deus hebreu não tolerava que outros deuses fossem adorados pelos homens. Ele queria adoração exclusiva e, por isso, abominava todos aqueles que prestassem culto a outras divindades, mesmo que fossem parte da realidade do Mediterrâneo Antigo. Sodoma era uma das cinco cidades-estado que ficava no Vale do Sidim, próximo ao Mar Morto e a promessa do deus hebreu para Abraão e seus filhos (dada no capítulo 12 do mesmo livro) é que dele surgiria uma grande nação. Seriam abençoados os que ele abençoasse e amaldiçoados os que a ele injuriassem. Com essa promessa, Abraão partiu...

Povo escolhido, nação santa

Um povo escolhido por um deus assim tão soberano tem o direito de difundir e obrigar, mesmo que pela força, outras civilizações a se submeterem à sua crença. A fé de Abraão sedimentava-se na ordem: “Sede santos, porque eu, Iahweh vosso Deus, sou santo” (Levítico 19,2). Tal santidade não se alcançaria com a aceitação pacífica da diferença dos outros deuses, mas pela reprodução dos padrões de santidade que elegiam os hebreus como “nação santa”. E quais eram esses padrões de santidade?

Os padrões de santidade da Bíblia Hebraica apontam para um tipo de sociedade que, naquele tempo, para aquele povo, naquele contexto de conflito entre civilizações e formação de estados-nação, fazia algum sentido: uma sociedade chefiada por homens de honra, guerreiros, donos de suas mulheres e senhores de escravos, muitos desses, conquistados como despojos de guerra. Ainda mais interessante é que essa estrutura de sociedade patriarcal que subjugava mulheres e justificava a escravidão dos mais fracos, admitia como código de conduta um conjunto de prescrições religiosas que dividia o mundo entre coisas puras e coisas impuras. Assim, tudo o que naquele código (que pode ser conhecido a partir do capítulo 11 de Levítico) fosse classificado como impuro seria abominação para o deus hebreu. Isso, então, explica a razão de Levítico 18,22 declarar: “Não te deitarás com um homem, como se deita com uma mulher. É uma abominação” e, na sequência, capítulo 20, verso 13, decretar: “O homem que se deita com outro homem como se fosse uma mulher, ambos cometeram uma abominação, deverão morrer, e o seu sangue cairá sobre eles”.

Essa era uma lei para os hebreus. Uma lei religiosa que tinha implicações para a organização política e social daquela sociedade. Era uma lei a partir da qual se definiu como padrão que clãs e famílias seriam chefiadas por homens, que essas famílias se constituiriam a partir do intercurso sexual entre homens e mulheres e, que o coito teria a finalidade de multiplicar esse povo sobre a terra. Dessa maneira se construiu um modelo de família patriarcal e sexista, que como herança desse judaísmo antigo se espalhou com o cristianismo por todo o Ocidente.

Curiosamente, ao longo dos séculos, certas prescrições religiosas desse período foram sendo abandonadas. Como, por exemplo, quando um homem que comete adultério com a mulher do próximo, ele e a mulher, não são mais mortos. A prática pode até não ser moralmente aceitável, mas eles não são mais tão abomináveis como antes. Da mesma maneira, trabalhar aos sábados ou comer carne de pouco – considerada impura –, não são hoje mais tão decididamente abomináveis perante deus. Entende-se tais prescrições como leis específicas e não universais, típicas de um povo, de uma cultura, de um tempo que após dois mil anos parecem não mais terem sentido para o nosso tempo. Mas o fato intrigante é que nem todas as leis do Levítico foram por assim dizer contextualizadas! Parece que os religiosos que vociferam na rua palavras de condenação à homossexualidade, nos dias de hoje, têm um critério especial para eleger quais versos devem ser literalmente interpretados e quais devem ser compreendidos à luz de nosso tempo. 

Desse modo, posto que são “povo escolhido, nação santa” e porque estão autorizados pelo deus deles a conquistarem todas as outras nações, culturas e pessoas justifica-se o proselitismo, as pregações contrárias aos direitos civis de igualdade e de liberdade de consciência e a intensa campanha contra a homossexualidade que resulta em homofobia, violência e morte. Tudo em nome de deus...

Alguém me disse que tenho de ser mais breve em meus posts. Em minha defesa, estou ainda em fase de ajustes. Mas para terminar, gostaria de dizer que o conjunto de textos que a Bíblia carrega não serve para justificar, legitimar ou promover, nos dias de hoje, as atrocidades, a intolerância e as ações agressivas contra homossexuais ou trans*, nem por palavras, muito menos por gestos ou ações. Marcela e João não optaram por serem homossexuais e não merecem ser classificados como abominações ou aberrações. A identidade de gênero de Marcela e a orientação sexual de João é assunto que cabe aos dois. Uma sociedade verdadeiramente democrática deve garantir-lhes todos os direitos civis. Uma sociedade que se pretende igualitária e justa deve permitir que todos cidadãos e cidadãs possam andar nas ruas com cabeça erguida, sem medo.

O abominável discurso da abominação não cabe para nenhuma sociedade que se pretende ilustrada.

Os religiosos não menos ilustrados bem poderiam ater-se ao que a Bíblia assim diz: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Evangelho de Mateus, capítulo 22, verso 39). 

E, com isso, fazer valer mais do que a Lei: fazer valer o Evangelho.

* Nome fictício.
** Nomes fictícios.

[1] Hester, J. David. Eunuchs and the Postgender Jesus: Matthew 19.12 and Transgressive Sexualities. In JSNT 28.1 (2005): 13-40.

Comentários

  1. Cara Elisa não sei se há necessidade de diminuir seus post, pois acho, que neste artigo cada parágrafo se faz necessário. Me chama atenção a forma em que realmente ao longo da história fomos fazendo escolhas conformes nossas conveniências e necessidades me preocupa como em pleno século XXI, ainda vemos atos de intolerância contra outros seres humanos. As agressões sofridas por homossexuais, sejam eles do sexo masculino ou feminino, ultrapassam as vociferações sofridas por sua amiga Marcela, e pelos rapazes citados, em muitos casos os ataques são físicos, cujo resultado tem ferido e levado a morte inúmeras pessoas que optaram (aliás nem posso afirmar que é uma escolha) viver a sexualidade de forma que contraria a heteronormatividade. Certa vez por insistência de minha mãe fui assisti a um culto neopentecostal numa das infinitas igrejas da periferia de Juiz de Fora. Pois bem, o pastor passou quase todo culto pregando sobre Maria Madalena e a atitude de Jesus conhecida por todos. Quando o culto se encaminhava para o final, o pastor pediu mais uma vez a atenção dos fieis para dizer que naquele dia “as lágrimas de Jesus sangravam”, pois estavam transformando a cidade numa Sodoma. Era dia do desfile do “Miss Gay” e sua famosa parada gay. Ou seja, no final do culto todos e, principalmente o pastor, descobriram que nunca haviam cometido nenhum pecado e assim poderiam apedrejar quantos quisessem. Afinal, eram os escolhidos.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Achei super interessante esta sua colocação Malu Evaristo, sobre este culto em dia de Miss Gay e parada gay. Interessante este olhar sobre um culto pentecostal bem neste dia de eventos marcantes para o público GLBTT, analisando as palavras e reações do pastore fieis.

      Excluir
    2. Malu Evaristo, obrigada pela leitura atenta. Tenho pensado em escrever a respeito dos pentecostais, assunto que concerne a minha pesquisa. Farei isso com calma, pois se por um lado gostaria de contribuir ao debate que denuncia os abusos desse discurso, por outro, não gostaria de reificar a prática de demonização da religião do outro. Isso porque se eu fizesse isso, estaria apenas repondo a mesma lógica bélica e perversa que alguns deles usam para desqualificar a religiosidade dos afrodescendentes. Obrigada pela leitura, mais uma vez. Quanto ao tamanho dos posts, para os fins desse blog, gostaria que os textos tivessem um formato interessante: que despertassem o interesse do leitor e ao mesmo tempo não perdessem em conteúdo. Aceito sugestões. Abraço!

      Excluir
  2. Muito, mas muito rico seu post, professora Elisa. Todo o texto nos traz informações cruciais para o entendimento e reflexão sobre a questão da homossexualidade e e religião. É um tema que muito me interessa em estudar, além de ser tão atual, está envolvendo comportamentos de religiosos e não religiosos, pois a religião na sociedade está tendo um papel crucial na formação de opinião pública, contrariando tantos estudiosos que imaginaram sua "morte" com o advento da modernidade e pós modernidade.
    Nossa sociedade sexista e machista, além de possuir seus valores baseados na heteronormatividade, se apoiam em todos os pontos que dão vida e voz ao seu egocentrismo e preconceito de conviver com aquelas minorias, sejam sexuais, raciais, dentre tantas outras. Fugiu do padrão, é apedrejado: e a religião, especificamente as pentecostais e neopentescostais, com a força da palavra e o uso mítico da bíblia, reforça as fileiras do preconceito e discriminação, gerando violências de todas as ordens.
    Gostaria de ainda ir escrevendo mais, conforme a inspiração dos sentimentos, mas como o espaço não permite, paro por aqui. Obrigado pelas contribuições, ao nos permitir pensar, que tem nos proporcionado.

    ResponderExcluir
  3. Professora Elisa agradeço pelo texto tão esclarecedor. Penso que muitas pessoas são preconceituosas, e a interpretação da Bíblia de acordo com suas conveniências, faz com que elas continuem praticando esse preconceito em nome de "Deus".

    ResponderExcluir

Postar um comentário