Pode o Ensino Religioso tematizar apenas uma tradição religiosa?


 
Fonte http://chargesdobenett.zip.net/. Acesso em 9 jun 2014.

No Diário Pernambucano de domingo 8 de junho de 2014, um tipo de jornal "fake", conforme soube recentemente, uma nota me provocou. Ela declarava que em função da controvérsia gerada pelo acordo entre governo e Vaticano, o MEC decidiu propor diretrizes nacionais para o Ensino Religioso. Isso, em razão de tal acordo ter dado privilégio ao ensino do catolicismo, contrariando o estatuto laico do Estado brasileiro. O título da matéria era “Lei obrigatória levará candomblé às salas de aula”. Em princípio, sem saber do caráter de sátira do jornal, propus o texto abaixo como reação ao que havia lido. Avisada, posteriormente, de que não se tratava de um "fato", pensei: "-Devo retirar o post?" Resolvi que não. Mantive-o. Por uma razão apenas: embora a notícia seja uma brincadeira, quem tem trabalhado com Ensino Religioso no Brasil sabe que esse componente curricular não goza de diretrizes nacionais, o que permite que seja, ou não, implantado nas redes municipais e estaduais, segundo os  parâmetros das tradições religiosas locais melhor representadas politicamente.

Pois bem, então, segue o post intitulado "Pode o Ensino Religioso tematizar apenas uma tradição religiosa?", após revisão.

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A nota (fake) sugere certa prevalência do conteúdo relativo às religiões de matriz afro, como conteúdo exclusivo para esse componente curricular. Vejamos o texto: "sendo ideal o aproveitamento de tal disciplina para uma retratação histórica devida aos afrodescendentes brasileiros por anos de desumanização, exploração escravista, genocídio físico e cultural. Este último, realizado através da repressão direta ou estigmatização de suas crenças pelo cristianismo". (Disponível em http://www.diariopernambucano.com.br/noticias/lei-obrigatoria-levara-candomble-as-salas-de-aula/. Acesso em 8 jun 2014).*

Qual é o problema dessa declaração, cuja intencionalidade é projetar uma crítica com humor?

O problema, ao meu ver, é que as diretrizes nacionais para o Ensino Religioso, quando elaboradas, devem contemplar mais do que uma "retratação histórica" para com os afrodescendentes e, isso, considerando os mesmos motivos elencados no texto acima: a desumanização, a exploração escravagista e o genocídio físico e cultural. O cerne dessa questão é que essas atrocidades foram ocasionadas pelo privilégio de uma religião e de seu discurso, em detrimento de outras. Mas se investigarmos a questão um pouco mais a fundo, verificaremos que isso ocorreu porque o Brasil de então, do período da colônia até a monarquia, deu à igreja católica o monopólio do campo religioso. Chego mesmo a me perguntar se podemos aplicar o conceito de campo para a compreensão das relações entre as religiões nesses períodos, já que pela acepção do termo, sabidamente bourdiana, o campo seria um lugar de disputa, de tensão e de contato entre diferentes grupos sociais. Se naquele tempo, o privilégio era católico e as outras tradições ficavam à margem, pergunto-me se havia esse espaço de interlocução e disputa entre as religiões?

Do ponto de vista histórico-jurídico, pode-se dizer que o campo religioso brasileiro pôde ser considerado plural, quando foi firmada a República (1889) e o Estado declarado laico (1891). Esses são os marcos históricos que nos permitem começar a pensar a pluralidade religiosa em nosso país, simplesmente, porque antes disso todas as convicções religiosas, pertenças, credos e outras modalidades de crença não-católicas, eram constrangidas.

Assim, se a República instaurou a liberdade de consciência religiosa, também com ela teve início o movimento de pluralização do campo religioso. E, desde então, gradativamente, o declínio da prevalência e da hegemonia católica. Não é segredo que a igreja católica, pela presença constante nas escolas, não apenas as suas confessionais, mas também as públicas, sempre contribuiu fortemente para a construção de uma identidade nacional católica. Identidade que passou a ser questionada com a presença protestante, mesmo que ínfima, e a posterior chegada, já no século 20, dos pentecostais. Daí, que a representatividade cristã no campo religioso brasileiro sempre foi mais acentuada, ficando a diversidade religiosa - tradições religiosas xamânicas, afrobrasileiras, espíritas e outras - espremidas (ou oprimidas) numa faixa estreita de pouco mais de 3% da população brasileira. Como gostava de lembrar Pierucci (Veja http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-40142004000300003&script=sci_arttext).

Ora, se quisermos ampliar o potencial político e democrático da esfera pública brasileira, se quisermos realmente implementar as prescrições da Carta Constituinte e da LDB e fomentar uma sociedade constituída de cidadãos críticos conscientes de seu papel de sujeitos na história desse país, não é bom, tampouco desejável que as diretrizes nacionais para o Ensino Religioso tenham como alvo uma retratação histórica. Isso é muito pouco, se quisermos não mais repor a prevalência de um discurso religioso em detrimento de todos os outros que povoam o campo religioso brasileiro. O Ensino Religioso no Brasil deve celebrar a diversidade religiosa implícita ao nosso campo. Isso significa tematizar, investigar, compreender e analisar TODAS as tradições religiosas presentes no território nacional. E isso me conduz aos dois últimos pontos desse post:

1) Tendo em vista os ataques desferidos por religiosos fundamentalistas, em geral, neopentecostais, às religiões de tradição afro (especialmente, candomblé, umbanda, quimbanda e congêneres), mais do que usar o Ensino Religioso para dar curso a um processo de retratação histórica, é preciso um programa de Políticas Públicas para conscientização da população, em escala nacional, quanto ao valor social e cultural dessas religiões não apenas para quem professa essas crenças, mas para toda sociedade brasileira. Esse programa, obviamente, passa pela Educação. Nisso o Ensino Religioso tem muito a contribuir. Entretanto, essa responsabilidade não deve recair exclusivamente sobre o Ensino Religioso. Trata-se de ampliar as frentes: nas artes (onde estão as artes nas nossas escolas públicas?), na educação física (quem são os professores de educação física de algumas redes públicas de ensino no Brasil, especialistas ou professores regentes? Vide o caso da rede pública de ensino do Estado de Minas Gerais. Vergonha!), nas aulas de história, no ensino de português e, enfim, na aclamada transversalidade tão lindamente pintada, mas tão pouco efetivada em nossos currículos escolares. É preciso que o "povo de santo" seja ouvido, que seus terreiros sejam tombados, que suas festas sejam celebradas nacionalmente, que seus costumes sejam conhecidos e que suas demandas sejam representadas politicamente. Por fim, devemos cuidar para que esses ataques injustificáveis não sejam tomados por políticos oportunistas, como ocasião para fazer votos ou "fazer bonito" nos meios de comunicação e redes sociais.

2) Para a elaboração das diretrizes nacionais do Ensino Religioso, o Estado deve agir com competência a fim de zelar pelas garantias que o pacto pelo bem-estar-social prevê para toda a sociedade civil. Isso significa pensar esse conjunto de diretrizes coletivamente, chamando para o debate não apenas as lideranças religiosas com seus interesses ideológicos, mas, principalmente, especialistas em religião e educação: a) Os especialistas, pesquisadores e professores, porque têm conhecimento teórico e empírico sobre as tradições religiosas e b) os educadores, professores em escolas públicas, principalmente, porque têm condições de apontar pela experiência que acumularam, quais as questões mais sensíveis que exigem tratamento imediato. É preciso compreender que o Ensino Religioso não trará a solução para os problemas que o campo religioso no Brasil tem enfrentado. Mas, sim, esse componente curricular tem potencial para a curto, médio e longo prazo fomentar uma cultura de respeito pela diversidade cultural e de crença.

Um pouco de boa vontade política ajudaria muito, mas que fique entendido que tal debate envolve muito mais pessoas do que os padres, freis e sacerdotes "bem-aventurados" e "bem intencionados" que acessoram, quando não vetam, os projetos de laicização do Ensino Religioso. (Mantenho enfáticamente isso!)

Então, somente para fechar: penso ser fundamental a tematização, a investigação, a compreensão e a análise do candomblé, da umbanda e de outras expressões de religião de tradição afro pelo Ensino Religioso, mas não apenas essas religiões. É igualmente necessário que outras religiões sejam estudadas no âmbito dessa disciplina. Inclusive as cristãs evangélicas, para que se entendam os pontos de vista (não se justifiquem!) e para que pelo desenvolvimento de conhecimento específico sobre essas religiões sejam construídas pontes, que nos ajudem a transitar entre os conjuntos de crenças e seus sistemas simbólicos sem ser apenas por acusações.

Vale dizer, e isso falo como especialista, que tal perspectiva nos ajudaria a perceber que existem mais similaridades entre algumas religiões do que diferenças. E, aqui, não me refiro às equivalências entre religiões cristãs! 

Mas esse assunto fica para uma próxima. (Cuja motivação não será, espero eu, uma reportagem fake).

***

* "Não somos um site que produz somente mentiras ou mera desinformação. Trabalhamos com verdades incômodas e com mentiras convenientes" (Disponível em http://www.diariopernambucano.com.br/quem-somos-2/. Acesso em 10 jun 2014).

Por Elisa Rodrigues

8 de junho de 2014. (Revisado em 10 de jun 2014)

Comentários

  1. Elisa, você disse:
    "Do ponto de vista histórico, pode-se dizer que o campo religioso brasileiro pôde ser considerado plural, quando foi firmada a República (1889) e o Estado declarado laico (1891). Esses são os marcos históricos que nos permitem começar a pensar a pluralidade religiosa em nosso país, simplesmente, porque antes disso todas as convicções religiosas, pertenças, credos e outras modalidades de crença não-católicas, eram constrangida".

    Eu entendi o que você quis dizer (eu acho). Mas não teria sido melhor ter dito de outro modo? Dá a impressão que a República e a declaração legal de estado laico estabelecem as bases da pluralidade religiosa brasileira, quando, salvo engano, a pluralidade já estava lá, conquanto não reconhecida. Posso pensar - sim - a pluralidade anterior a essas datas, pesquisá-la (via história, por exemplo), problematizá-la, ver como era seu modo de ser e de realizar sua expressão em contexto de não reconhecimento... As datas citadas apenas trazem para a formalidade algo que era, até então, conquanto real, informal.

    Não?

    Ou não havia cultos não cristãos no Brasil e só passaram a existir após aquelas datas?

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    1. Osvaldo,
      talvez a redação não tenha cooperado, mas minha intenção foi demarcar a laicidade jurídica. Quando à pluralidade de religiões, mesmo que constrangidas pela hegemonia católica, de fato, ela já estava em curso. Mas o marco jurídio da separação entre Estado e Igreja é o que juridicamente abre espaço para que as religiões "saiam do armário" e a configuração do país, assim como da sociedade, seja reconhecida como plural.
      E quanto aos cultos cristãos, eles já existiam. Todavia, se apenas esses cultos existissem, o que não é o caso, aí é que não haveria elementos para falarmos em pluralidade, pois os cristãos católicos ou evangélicos, como você bem sabe, comungam do mesmo quadro de referências míticas e simbólicas...
      Abraço,
      Elisa

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  2. Elisa, acho que você caiu em uma pegadinha, que quem é de Pernambuco já deve ter sacado: essa notícia é do Diário Pernambucano, um jornal "fake" que é na verdade um site de molecagem e sátira do Diário de Pernambuco (o jornal mais antigo da América Latina e que é muito famoso na região). Então eles pegam temas que estão em evidência e brincam com as coisas, criando notícias estapafúrdias que fazem rir e pensar... Mas não são fatos!

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  3. Olá Gilbraz!

    Agradeço seu alerta. Fiz algumas alterações no texto, mas mantive-o em razão de considerar a provocação feita pela notícia "fake" oportuna. Eu tenho visto e ouvido muitas coisas a respeito do Ensino Religioso, do tipo: "lugar para tratar da espiritualidade do aluno", "ocasião para dar ensino moral", "disciplina para tratar de temas atuais como bulling, drogas, sexualidade", enfim... tudo isso e mais um pouco. Acho que por isso me arvorei na escrita do post e não chequei a fonte. Estou empenhada em discutir com meus alunos o lugar do Ensino Religioso dentro do conjunto de componentes curriculares que formam a Base Nacional de Ensino. Principalmente, no sentido de indicar que a Ciência da Religião tem uma proposta para conteúdo e metodologia desse componente. Então, porque no fim das contas, acho que escrevi sobre isso, mantive o post.

    Abraço,
    Elisa

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  4. Do ponto de vista da Lei (LDB) ER não é nem ensino moral, nem ensino de transcendência, nem ensino de valores, nem ensino de educação. ER é ensino (reflexão sobre) religião, sob recorte crítico. Nesses termos, defenderei ER. Naqueles, não. Nesse sentido, comungo com sua labuta e seu engajamento.

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