Sobre a beligerância e o pentecostalismo. Reflexões em curso



Guerra Santa. Carlos Magno contra os saxões. Coroado em 800, sua estratégia era obrigar os povos conquistados a se cristianizar.
Eu não estou interessada em fazer um discurso “interessado”, a respeito dos interesses de grupos pentecostais. Contudo, estou sinceramente imbuída do propósito de construir uma trajetória de pesquisas e estudos sobre pentecostalismo no Brasil que problematize os movimentos internos a esse subcampo do campo religioso brasileiro, sem reificar alguns estereótipos amplamente divulgados em nossas pesquisas acadêmicas e matérias jornalísticas. Isso, simplesmente porque penso que os estereótipos limitam as possibilidades de compreensão dos fenômenos religiosos.


E o que me move nessa direção é a suspeita de que existe uma indisposição (nem sempre) disfarçada dos acadêmicos do campo das humanidades para com os “crentes”. É certo que alguns pentecostais fazem por onde e isso contribui para o fortalecimento dos estereótipos. Não é possível ignorar relatos de extorsão, de charlatanismo, de manipulação e de situações, muitas, em que lideranças religiosas que se dizem pentecostais ou neopentecostais fazem uso de má fé para extorquir seus fieis. Todavia (e lá vem eu, de novo, com minhas conjunções adversativas!), os pentecostais e os grupos pentecostais são muito diversos entre si para serem todos classificados como duvidosos, exploradores e manipuladores. Uma leitura atenta dos trabalhos sobre pentecostalismo no Brasil produzidos por Paul Freston, Ricardo Mariano, José Bittencourt Filho, João Décio Passos, Ari Pedro Oro, entre outros, indica que o movimento pentecostal desde que chegado no Brasil no início do século XX, aqui instaurou-se representado por diferentes igrejas, umas mais rígidas nos seus códigos de usos e costumes, outras mais flexíveis. Algumas com discursos teológicos fortemente marcados pelos dons do Espírito, outras com acento mais agudo no carisma de suas lideranças. Embora não seja obrigação de todos ter conhecimento dessas distinções é, no mínimo, desejável que aqueles que pretendem falar a respeito do pentecostalismo reconheçam a diversidade interna a esse movimento que abriga, como o próprio campo religioso brasileiro, a qualidade de ser fluído, dinâmico e poroso.


Nesse sentido, vale dizer que a intolerância religiosa e o fundamentalismo não são, portanto, sinônimos de pentecostalismo. Dito de outra forma, os pentecostais não são todos intolerantes e fundamentalistas. Essa afirmação é, para ser exata, fruto de um consenso ignorante porque mal informado.  Tanto a intolerância religiosa, quanto o fundamentalismo são condutas também expressas por adeptos de outras modalidades religiosas. Exemplo: católicos foram intolerantes com protestantes históricos, os quais também foram intolerantes com católicos, no Brasil do início do século XX. Além disso, o fundamentalismo, por si somente, não representa apenas uma conduta. Antes, entende-se o fundamentalismo como um movimento dentro de diferentes religiões: podem existir católicos fundamentalistas, assim como muçulmanos fundamentalistas. O que move um grupo ou indivíduo a manifestar-se como fundamentalista é a compreensão de que sua fé se baseia em fundamentos (inegociáveis), que podemos chamar também dogmas ou doutrinas. Ora, o problema que essa não-abertura à negociação pode deflagrar é o uso da força (por meio de violência física ou simbólica) para o convencimento do outro quanto à legitimidade de um ponto de vista. Em geral, alguns religiosos – os fundamentalistas – têm dificuldade de reconhecer que os dogmas ou fundamentos sobre os quais assentam sua fé representam pontos de vista sobre a realidade e não, a única realidade. Por isso, podemos com alguma razão empregar o conceito de alienação para qualificar tais grupos religiosos. Eles seriam alienados da possibilidade de observar a realidade a partir de outras perspectivas, isto é, alienados porque interpretam a realidade a partir de um único e exclusivo ponto de vista: o religioso.


Se é assim, então, não apenas os pentecostais podem ser classificados como intolerantes, fundamentalistas e alienados. Mas, todos os religiosos que apresentem tais condutas.


Outro ponto para se problematizar. Negativizar (ou demonizar) religiões afro-brasileiras é uma estratégia de alguns grupos neopentecostais (mas não somente deles) que intenta por meio desse recurso arregimentar mais fieis por meio da deslegitimação da divindade – ou conjunto de divindades – do outro. Sabidamente, essa estratégia resulta em condutas inapropriadas de desrespeito e beligerância. Orixás difamados, imagens destruídas, oferendas, símbolos e outros tornaram-se alvo de escárnio e violência. Nesse sentido, também imagens de santas e de santos católicos, há tempos, constituem alvo de alguns neopentecostais. A diferença entre a intolerância para com os orixás e a destinada aos santos católicos, talvez, se explique porque os primeiros representam as divindades de religiões minoritárias, ao passo que os segundos pertencem ao panteão seres divinizados de uma religião em declínio, mas, ainda, majoritária. Isso poderia explicar, mas de modo algum deveria ser aceito como justificativa. Nenhuma agressão física ou simbólica a um religioso e sua crença deve ser tolerada. Nisso reside a qualidade fundamental de um Estado laico: o dever de zelar pela liberdade de culto e de fé que todo e qualquer cidadão tem, garantido pela Constituição.


Pelo quê deveríamos perguntar, então? Ao meu ver, pela recorrência dessa estratégia no campo religioso brasileiro. O discurso que deslegitima a divindade do outro não me parece ser o maior problema, tendo em vista que se trata de um recurso conhecido pelos cristãos ainda em razão da sua herança cultural e religiosa judaica. No Mediterrâneo Antigo, com os hebreus, e no Oriente Médio, hoje, as religiões monoteístas são conhecidas pelos seus ardis e emboscadas aos deuses pagãos: Javé mandava não erigir estátuas de outros deuses, os filhos de Baal eram amaldiçoados; Paulo bradou no Areópago em Atenas que a divindade verdadeira não era semelhante a ouro, prata ou pedra (referindo-se ao Cristo ressurreto) e, mais recentemente, os católicos disseram aos índios que seus espíritos da floresta eram demônios, assim como Tupã, na verdade, era Deus.


Se esse “ardil”, então, se repõe ao longo da história, o que fazer quando o que se pleiteia é o valor da igualdade, do respeito a todos os credos e a liberdade de consciência, seja ela política, filosófica ou religiosa (Segundo as disposições da constituição de 1988, CAPÍTULO I - Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, Art. 5º: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...); VI. é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias)?


Parece-me que é tarefa de um intelectual que se julga comprometido (ou orgânico!) trabalhar no sentido de problematizar as antinomias e as oposições entre grupos religiosos, indicando as suas limitações mais do que reforçar polaridades por meio dos estereótipos. Neopentecostais são tão inescrupulosos e alienados quanto alguns católicos, protestantes e outros. Eles são tão comerciais quanto o são adeptos de outras religiões que em seus cultos admitem ritualmente o dinheiro, seja como dízimo, seja como oferta ou oferenda, seja como meio de se comprar algo que visa agradar sua divindade.


Então, no frigir dos ovos, a pergunta que lanço por meio desse post é a seguinte: é válida a estratégia de negativização dos pentecostais? Esses discursos inflamados que generalizam o movimento pentecostal colocando-o em termos de engodo e refratário ao pensamento moderno e racional contribuem , de fato, para a construção de um campo religioso menos beligerante e uma sociedade civil mais igualitária?


Continua...

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