A análise do mercado religioso evangélico: samba de uma nota só



O texto a seguir é fruto de certa reflexão elaborada por ocasião de uma matéria publicada em revista de circulação nacional, cujo tema era o crescimento da população evangélica. Como tenho comentado a esse respeito com meus alunos de Ciência da Religião, pensei ser oportuno publicar esse comentário com vistas a problematizar o paradigma de mercado religioso que, volta e meia, aparece nas falas dos analistas de plantão, sempre em tom pejorativo, para evidenciar uma “perversidade” da religião pentecostal sempre tão comercial! O que faço aqui de forma breve é apontar que o uso a-crítico desse paradigma, assim como de qualquer modelo teórico, ao invés de iluminar um objeto para que possamos conhecê-lo e compreendê-lo melhor pode, ao contrário do que se pretende, colocar sob holofotes apenas um aspecto do objeto. Isso significa, então, apenas um ponto de vista.

Vamos ao texto.

Perguntada algumas vezes a respeito da reportagem publicada na Carta Capital sobre os evangélicos, resolvi responder e manifestar minha opinião (Disponível em http://www.cartacapital.com.br/destaques_carta_capital/a-avalanche-evangelica). Em primeiro lugar, acho significativo que uma revista de circulação nacional e dedicada ao grande público apresente em sua capa e como uma das matérias centrais de seu número, um texto cujo tema seja o crescimento dos evangélicos no Brasil. Em segundo lugar, acho igualmente relevante que a redação do texto, ao meu ver, não seja proselitista, tampouco de um senso comum esvaziado – como foi no caso do número da Isto é  dedicado ao (neo)pentecostalismo em geral e, à Igreja Mundial do Poder de Deus, em particular (Disponível em http://www.istoe.com.br/reportagens/331588_A+ESPERA+DE+UM+MILAGRE). Em terceiro lugar, preocupa-me o fato de que os intelectuais consultados representem apenas uma das áreas das ciências humanas e aqui apresento minha explicação: não se trata de objeção, mas cautela. Existem diferenças epistemológicas no trato do tema que resultam diferentes abordagens e, consequentemente, conclusões heterogêneas. Isso seria favorável para a compreensão mais refinada do assunto. Se outras perspectivas fossem expressas para compor o quadro reflexivo sobre a questão do crescimento dos evangélicos no Brasil, a sociedade civil e o debate no âmbito da esfera pública somente teriam a ganhar. Analisado sob apenas um viés, o fenômeno é reduzido: torna-se, portanto, “samba de uma nota só”.

Não é de hoje que a expressão “disputa no/pelo mercado religioso” caiu no gosto popular e dos jornalistas. Inspirada no paradigma de mercado religioso elaborado por Pierre Bourdieu e encampada no Brasil por alguns cientistas sociais, ela visa explicitar a aproximação entre religião e a noção de mercado de consumo, tendo em vista a assimilação de uma linguagem econômica marcadamente capitalista que prevê a atuação de profissionais (especialistas da religião) e clientes (leigos). Os primeiros tidos como produtores da religião e de produtos ligados a ela e, os segundos considerados os que consomem tais mercadorias enfeiti[cha]dos pela ilusão da salvação. Eu seria simplista se ignorasse ideias como a “fidelização do crente” por meio de certas estratégias disponíveis no mercado e assumidas no meio religioso. Seria cega se não visse a produção e disseminação de produtos da marca gospel destinadas ao atendimento de demandas cada vez maiores desse segmento.

Não é o caso de ignorar a disputa por fiéis entre católicos e evangélicos e, recentemente, a disputa interna dos evangélicos pela manutenção de seus rebanhos. Mas, repito, trata-se de ampliar o referencial epistemológico, a fim de que a análise não reduza o fenômeno religioso a cifras e, como resultado disso, a religião como produto do capital. Se não podemos tecer nossas análises descoladas de nosso tempo e contextos socioculturais específicos, também não podemos cometer o ledo engano de entender o sistema econômico ou a política como aquilo que definem e determinam a natureza da religião, isto é, entender a religião como derivação ou desvio de algum modelo. Se simplesmente chaparmos um modelo descritivo à religião, estaremos tocando um “samba de uma nota só”. Isto equivale a dizer: estaremos perdendo as nuances melódicas e as dissonâncias internas ao fenômeno religioso, esse, muito mais dinâmico do que o paradigma de mercado religioso consegue entrever. Os evangélicos crescem numericamente no país, movimentam um mercado de produtos e cifras em dinheiro volumosas, as igrejas (neo)pentecostais oferecem serviços de milagres e curas imediatas que arrebanham multidões, mas o que isso significa? Em que essas constatações nos ajudam a pensar as relações sociais, a construção das identidades, os processos de significação dos rituais, a relevância da religião para a sociedade civil, a contribuição da religião para a formação do secular? Essas perguntas me parecem apontar rendimentos mais interessantes.

Por fim, como fenômeno que encontra condição de possibilidade para fermentar diversos sentidos nas ruas, nas igrejas, nas escolas, nos órgãos da União e dentro das casas, a religião é ressemantizada na prática das pessoas, dos sujeitos que a colocam em ação e não somente no teatro dos especialistas, dos gestores religiosos, sejam eles tele-evangelistas, padres cantores, cantores de funk gospel etc. A religião também é produzida pelos fieis, por aqueles que atribuem sentidos, selecionam os conteúdos que querem consumir, se espremem nas multidões para tocar um pastor ou padre ou, simplesmente, fomentam sua fé midiaticamente.

O mercado é um meio pelo qual a religião modernamente se reconfigura, mas não é aquilo que nos permite compreendê-la em seu movimento ao longo da história. Ou, para dizer de outro modo, se quisermos entender as “piscadelas” da religião, seria mais profícuo ter atenção ao que pode significar esse seu “beliscão” ou essa sua forma de expressão mais recente, que envolve o uso ostensivo da mídia e a interface com política e cultura.

Texto originalmente escrito em 29 de julho de 2012.

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