Rubem Alves e os paradoxos



A vida ordinária já era bastante sem graça. Não precisávamos ficar sem ele. Não agora.” Foi isso o que pensei  quando soube do falecimento de Rubem Alves. Depois pensei em tantas outras coisas!... Mas não com o tempo desejável para pensá-las com a merecida pausa. Tempos difíceis esses, Tempos fugit.

Como uma pessoa tão cheia “da graça”, de criatividade, do rigor acadêmico e da sensibilidade poética foi, ao mesmo tempo, tão atraente e tão repudiado? De certo que a repulsa que ele causou foi em mentes muito pouco privilegiadas. As de alguns religiosos amedrontados, tementes de um deus que lhes deseja sempre como ovelhas submissas no pasto. Nunca como brisa solta e leve. Rubem era brisa. Ele desejou romper a cerca que lhe impunha limites. Ele não aceitou que lhe quebrassem a pata, para que pela dor permanecesse aos pés do pastor. Ele foi longe!

De tão longe, chegou até as cercanias da divindade. Daquela que não se esconde entre as paredes dos templos e que manda os seus crentes saírem e convencerem, se preciso pela força, que estão errados todos os que nele não crerem. A divindade de Rubem era algo sem nome, mas era belo e alaranjado como o entardecer no outono. A divindade de Rubem não ordenava, prendia ou torturava, mas soava forte e belíssima como a Nona de Beethoven. Lembro-me dele espantando com suas metáforas poéticas não apenas teólogos, mas também jornalistas e intelectuais que esperavam dele algo mais sólido, mais dogmático, mais fechado como simploriamente julgam ser o pensamento de alguém que emergiu do mundo religioso.

Mas Rubem, como também a religião, não me parece ter sido homem de limites claros. Ele não foi afeito as obviedades. A sua fala evidenciava sempre os deslocamentos de significado, os agenciamentos, as “teias de sentido”, na religião, na filosofia ou na educação. Tudo em permanente estado de dialogia. Talvez, por isso, sua trajetória tenha sido feita de descontinuidades. Talvez, por isso, sua trajetória tenha sido vista como algo deslocada. Não por ele, mas por quem, assim como os religiosos de mentes fracas, na academia, não puderam reconhecer nele o valor de uma potência orgiástica que subvertia o chato mundo acadêmico e transformava-o em algo intenso, belo e dialógico.

Rubem Alves se insurgiu contra os esforços monologizantes, contra a estúpida uniformização das ideias, contra o desejo de organização. Ela sabia que a despeito dessa vontade de poder, o mundo seguiria caótico, poroso e plural. Ele sempre soube que as fronteiras definem contornos para os grupos, mas não arrematam as pessoas sempre e da mesma forma: elas e tudo que elas criam representam suas diversas vozes em seus devires múltiplos.

Fronteiras marcam limites, mas as pessoas atravessam, circulam, pulam essas marcas. Quem conheceu Rubem Alves, timidamente, como eu ou, intimamente, como alguns amigos sortudos, talvez, concordem comigo a respeito dessa relação dele com as marcas religiosas: ele as atravessou, passou por elas, levou-as, circundou-as e superou algumas delas. A sua existência errática conheceu algum ordenamento por meio da formulação de narrativas, por meio das quais pensou a religião, a filosofia e a educação em seus paradoxos.

Para encerrar, um fragmento de texto que extrai de um pequeno livro de Rubem. O fragmento que estampei na epígrafe de minha tese defendida em 2014, mas que carrego desde 2002.

“(...) para a religião, não importam os fatos e as presenças que os sentidos podem agarrar. Importam os objetivos que a fantasia e a imaginação podem construir. Fatos não são valores: presenças que não valem o amor. O amor se dirige para coisas que ainda não nasceram, ausentes. Vive do desejo e da espera. E é justamente aí que surgem a imaginação e a fantasia, ‘encantações destinadas a produzir... a coisa que se deseja...’ (Sartre). Concluímos, assim, com honestidade, que as entidades religiosas são entidades imaginárias. (...) Não, não estou dizendo que a religião é apenas imaginação, apenas fantasia. Estou sugerindo que ela tem o poder, o amor e a dignidade do imaginário. (...) Por que razões os homens fizeram flautas, inventaram danças, escreveram poemas, puseram flores em seus cabelos e colares nos pescoços, construíram casas, pintaram-nas de cores alegres e pregaram quadros nas paredes? Imaginemos que esses homens tivessem sido totalmente objetivos, totalmente dominados pelos fatos, totalmente verdadeiros (...) poderiam eles ter inventado coisas? Onde estava a flauta antes de ser inventada? E o jardim? E as danças? E os quadros? Ausentes. Inexistentes. (...) Foi necessário que a imaginação ficasse grávida para que o mundo da cultura nascesse. Portanto, ao afirmar que as entidades da religião pertencem ao imaginário, não as estou colocando ao lado do engodo e da perturbação mental. Estou apenas estabelecendo sua filiação e reconhecendo a fraternidade que nos une”.


Rubem Alves, O que é religião? (2002), p. 30-31.

Comentários

  1. preciso de ajuda com este tema poderia me auxiliar, meu email mirellebernardino@gmail.com
    Grata!

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