O novo Templo de Salomão



O templo

2014. A Igreja Universal do Reino de Deus inaugurou em 31 de julho, a sua réplica do Templo de Salomão. Trata-se de uma construção que segue o mesmo padrão arquitetônico da construção que o Rei Salomão, dos tempos do judaísmo antigo, construiu para adoração de Iahweh. Esse templo está celebrado em prosa e em verso na Bíblia Hebraica – o Antigo Testamento – e é reconhecido como magnífica construção que antecedeu os tempos de Jesus (a descrição pormenorizada da “Casa do Senhor” está documentada em 1 Reis 6-8). Um símbolo da fé judaica que com sua magnitude representava, dentre outros aspectos da teologia judaica, a superioridade de seu deus sobre todos os outros. Neste templo, celebrava-se o perdão para Israel por meio do sacrifício feito com sangue de alguma vítima animal – cordeiro ou pomba – que era morto e imolado para a purificação dos pecados daqueles que confiassem em Iahweh. O sacerdote que executava o sacrifício deveria ser o mais puro e irrepreensível para que o ritual tivesse real eficácia. O animal sacrificado, a oferta, deveria ser a melhor: a mais pura e perfeita (Êxodo 29; Levítico 1-7). Não se tolerava no templo a presença de mulheres impuras, por exemplo, com fluxo de sangue ou mulheres e homens que não tivessem passado pelos ritos de purificação após coito. Fluídos, suores ou gosmas eram abomináveis. Tampouco era permitida a proximidade de qualquer pessoa com doença, especialmente, a lepra, ou que tivessem tido uma alimentação não atenta à Lei. Tudo isso e outras coisas mais estão em Levítico (capítulos 11-15), um dos primeiros livros do Pentateuco vetero-testamentário, em que estão documentas prescrições rituais que conduziriam o povo judeu pelo caminho do mundo profano rumo ao mundo sagrado.

Sabemos que nos tempos do judaísmo antigo, a regra religiosa era também a regra social. Um e outro não se separavam e o público se conduzia pela fé. Uma fé regulada por um sistema de doutrinas religiosas, cuja eficácia se comprovava na vivência social por meio de uma sociedade organizada (as leis dadas por Iahweh ao seu povo podem ser conhecidas em Êxodo, capítulos 20-23). A religião, pois, colocava as coisas em seu lugar. Havia grupos sociais, com funções estabelecidas. Havia partidos – fariseus, saduceus, zelotas, levitas, escribas, por exemplo – que disputavam a legítima interpretação das Escrituras, isto é, da tradição e, assim, zelavam pela preservação de uma memória que lhe era constitutiva e que passava pela história de seus heróis, de seus pais na fé, de suas lutas pela terra e pelas vitórias sobre povos inimigos do Antigo Mediterrâneo, idólatras e pagãos.

Importava, então, que o deus que lhes havia guiado pelo deserto e lhes concedido a vitória tivesse um templo que fosse maior em gênero, número e grau, que Baal ou qualquer outra entidade. Importava que a sua santidade e pureza se erguesse sobre todos, que seu povo fosse atento a essa santidade e que Israel fosse como Iahweh: santo, irrepreensível e puro. Isso posto, a desgraça, a miséria, a enfermidade e qualquer semblante de desordem, caos ou derrota se entenderiam pelo desvio da vontade de Iahweh, espécie de anomalia. O sistema de classificação do religioso explicava, portanto, o social. O contrário disso, a graça, a abundância, a perfeição eram sempre resultado da obediência e submissão ao deus judaico. Por isso, diz-se que a religião do judaísmo antigo se entende como que por um sistema de pureza e impureza, tal como proposto pela antropóloga Mary Douglas (Pureza e perigo, 1976).

O que podemos pensar sobre a réplica do Templo de Salomão em 2014? O que essa grandiosa construção diz da fé, da teologia e das práticas do grupo neopentecostal que está por traz dessa réplica? Agora, de imediato, não tenho muitas respostas, mas algumas chaves que podem ser úteis para uma reflexão a respeito. Meu primeiro suposto é que para além do enorme investimento financeiro que essa construção deve ter necessitado, possa existir mais significados e ou mais mensagens a serem identificadas, que poderiam nos ajudar a compreender mais e melhor o tipo de pentecostalismo que vive hoje a Universal do Reino de Deus.

Os deslocamentos de sentido

Embora já exista uma gritaria contrária ao templo, crítica de Edir Macedo e furiosa com o abuso dos recursos financeiros usurpados dos “pobres fieis”, sempre vitimizados como inocentes e oprimidos por essa infame liderança, algo me diz que seria cauteloso darmos um passo atrás, pois as leituras teológicas e ou que buscam o verdadeiro e único sentido do texto bíblico, não fazem muito mais que defender um ponto de vista exclusivo. A afirmação segundo a qual, o templo coloca em questão a autoridade de Jesus ou o avanço do cristianismo que dispensaria a intercessão do sacerdote ou de templos feitos por mãos humanas não problematiza nada de muito relevante. Talvez, do ponto de vista da fé, tenha alguma relevância para os cristãos protestantes, para alguns católicos e outros pentecostais mais tradicionais! Contudo, sempre se pode justificar uma ou outra opinião a partir da seleção precisa de certos trechos da Bíblia. Mais do que isso, alguns cristãos costumam sempre disputar o monopólio da correta interpretação dessa literatura, à luz da iluminação do Espírito Santo (que nunca sei a quem inspira mais ou menos!).

Para um pesquisador de religião esse arrazoado não diz muito, pois não se trata de definir esse fenômeno em termos de retrocesso ou avanço, tendo em vista que a operação de continuidade com o judaísmo nunca saiu de moda: códigos de usos e costumes rígidos, tabus e proibições, dízimos e certos símbolos como indumentárias, véus e incensos não caíram em desuso por completo. No pentecostalismo, particularmente, o trânsito entre Antigo e Novo Testamento sempre ocorreu: ora buscando inspiração nos tipos do Pentateuco, ora exaltando os carismas do Espírito Santo. A figura de profetas bradando contra o pecado, à semelhança de Amós e a inspiração no apóstolo Paulo de Romanos ou Efésios sempre permaneceram lado a lado como receptáculos de verdades ou, diria Alfred Schutz, como províncias de significado (Sobre fenomenologia e Ciências Sociais, 2012). Se esse templo foi construído para autoridades políticas, para lideranças religiosas e pessoas com algum poder, também o foi para os fieis, que a despeito de serem chamados de oprimidos, incultos e manipulados, mais e mais, parecem também gostar da grandeza, do luxo e da beleza, tanto quanto um rico ou um político. Sepulcros caiados? Não está tudo tão claro assim! Nem tudo é preto ou branco. Existem nuances entre os tons. Existem ambiguidades nessa conversa que pedem para ser esmiuçadas.

Quem se arrisca andar pelo arenoso e movediço terreno da religião não pode deixar de lado os deslocamentos de sentido. Os processos de atualização dos símbolos e, ainda, os jogos de poder imbricados nessas tramas. O templo, a pureza, a grandeza são sinais que querem apontar para alguma coisa. Se entendemos que o campo religioso brasileiro é povoado por diferentes modalidades de religião e que elas estão em constante relação de tensão, de disputa e de troca, nem sempre de forma explícita, podemos inferir que há muito o que se conjecturar. Os deslocamentos de sentido ocorreriam para sustentar quais disputas? Para demonstrar qual deus tem mais poder e que povo é mais abençoado? O que se pode depreender desse movimento por um templo, por uma marcação de poder tão forte que exalta, retoma e venera um ícone do Antigo Testamento?

O agenciamento que o símbolo religioso pode mobilizar é tanto de cunho pragmático, quanto ontológico. A religião se utiliza dessa morfologia que dialoga com os tempos e os espaços para manter-se vívida e eficaz. O símbolo mantém-se sempre aberto e em permanente estado de dialogia. Pode parecer um desperdício, uma loucura ou um capricho a construção de um mega templo nos moldes do que foi o de Salomão. Mas não o é para quem acredita que esse deus é o mesmo de Israel, agora, em 2014. Não o é para quem acredita estar em permanente estado guerra contra os falsos deuses, verdadeiros demônios, adorados pelas outras religiões, assim como os judeus acreditavam estar contra os deuses filisteus, cananeus, fenícios, moabitas, amonitas e outros “itas”. O deus verdadeiro precisa ter sua grandeza materialmente representada. Se o fiel acredita nisso, ele sustenta a mega mania de seu líder: seja para construir o Templo de Salomão, seja para construir uma “Cidade Mundial” em cada grande capital brasileira, seja para construir uma basílica, como foi a de São Pedro na Idade Média. Poder e grandeza caminham lado a lado.

Para o religioso, o mundo é bagunça! O mundo é apenas confusão. Passado e futuro não possuem limites. Por isso, os esforços monologizantes, o empenho pela unidade, o desejo de organização. Tudo é caos e precisa ser ordenado, segundo uma forma, segundo um sentido. Se a religião provê um conjunto de crenças, de rituais, de meios para o alcance dessa ordem, é uma religião eficaz. Uma religião em que se encontram respostas. Fora do mundo organizado da religião está outro mundo sempre caótico que segue tentando a uniformização. E me parece que é isso que deve nos inspirar admiração: esse movimento contrário à instabilidade, ao fugidio, ao entre-lugar típico das religiosidades contemporâneas. Esse movimento em favor do coletivo, da identidade fixa e formalizada, do ato de nomear e de buscar por fundamentos, num mundo que ainda há pouco parecia se desfazer deles. Diria Latour, “Jamais formos modernos”.

O templo e as marcas


O que define um grupo: as fronteiras ou o seu conteúdo?

Geralmente, pensamos que o conteúdo de um grupo, isto é, suas crenças, sua teologia, suas práticas e seus costumes constituem aquilo que o define. Ora, o conjunto desses conteúdos pode ser chamado fronteira, mas as fronteiras não são apenas o que marcam e delimitam um grupo. Elas também o constituem e mais interessante, elas são móveis, talvez, maleáveis aos conteúdos. Se entendemos que os conteúdos religiosos estão em constante deslocamento, também as fronteiras se redefinem como consequência da redefinição dos grupos. As diferenças entre grupos religiosos pentecostais, por exemplo, se compreenderiam melhor se pensássemos as suas diferenças a partir de suas vozes e seus devires múltiplos. A polifonia é constitutiva do pentecostalismo como também própria a cada uma de suas representações. Assim, desde seu início nos anos 70, passando pelo período de maior turbulência e, concomitante, seu crescimento nos anos 90 até os dias de hoje, quando se firma num competitivo campo religioso, a Universal do Reino de Deus mantém certa tonalidade que se percebe na performance pentecostal, numa retomada dos ícones da Bíblia Hebraica e no apelo pelo reconhecimento de que seu deus é mais poderoso do que todos os outros. Isso se vê também noutras pentecostais, talvez, não na mesma forma e proporção, mas por meio de indícios e similaridades recorrentes. Ao mesmo tempo, ela é independente no âmbito do pentecostalismo brasileiro, possivelmente, porque suas estratégias de proselitismo uniram o desejo bíblico de grandeza, com a vontade de poder do liberalismo econômico. O espanto causado pela adoção de uma linguagem empresária e concorrencial legou-lhe à margem – de outros religiosos e de parte da sociedade civil –, mas isso não fez que deixasse de ser simultânea e importante ao pentecostalismo brasileiro. Deste modo, desde seu início, a Universal passou por várias formas (insisto na ideia de forma): da negação à institucionalização até os moldes de uma instituição legitimada no campo, mesmo que à revelia das igrejas congêneres. Vale dizer que uma existência errática somente conhece ordenamento na formulação de uma narrativa e quanto maiores forem os sofrimentos, as dores, os erros e os gloriosos acertos, mais validada será a narrativa, bem como o grupo que a formulou. A construção desse templo, pois, é parte dessa trajetória de longa distância. Não sei se corresponde ao clímax da narrativa, mas certamente à materialização de um conjunto de significados que paulatinamente têm sido fomentados por seus líderes junto ao coletivo de crentes.

Então, a metáfora da fronteira deve-nos servir como imagem de algo que carrega conteúdos simbólicos e pragmáticos de ordenamento e legitimidade. Isso vale para pensarmos a religião a partir dos seus paradoxos, de suas ambiguidades, de seus deslocamentos de sentido. Como um fenômeno autônomo na forma como se serve da cultura, da política e da economia, porém, não acima ou desconectado dessas esferas. É bom que se pense a religião e esse tipo de pentecostalismo da Universal como expressão que privilegia o mistério, em tempos nos quais a revelação se fez humana e racional. Sincronia de lógicas: o tradicional e o moderno.

Nada mais sem graça para o ser-religioso que busca no Sagrado aquilo exatamente sobre o qual não pode ter domínio, o sobrenatural, do que um deus que se fez palavra e que se pode compreender. A ambiguidade do religioso está no que não se pode deter: no mistério. Naquilo que está lá dentro do Santo dos Santos e que um homem comum não pode ter acesso, sob pena de ser fulminado. O Templo “moderno” de Salomão une todos esses fios: o pentecostalismo dos ícones judaicos, a possibilidade de deslocar os sentidos desses ícones dada na linguagem da religião, a construção de longa duração de uma narrativa de sentido que legitima a religião tanto quanto lhes confere espécie de coesão e, por fim, a materialização de seu afã de grandeza e poder, outrora, do Antigo Israel, agora, do novo povo escolhido.

Mesmo não completamente cientes desses elementos simbólicos e religiosos, felizes os políticos que tiverem ao seu lado, esse povo que se pretende tão poderoso!

Comentários