A religião, as alianças e o jogo político


O meu ideal político é a democracia, para que todo o homem seja respeitado como indivíduo e nenhum venerado. Albert Einsten.

Muitas vezes é a falta de caráter que decide uma partida. Não se faz literatura, política e futebol com bons sentimentos... Nelson Rodrigues

O primeiro pensamento, de Albert Einsten, é típico de um pensador que reflete sobre a política em termos sofisticados, banhados no mais positivo gosto pela razão e pela ciência. Já o segundo, Nelson Rodrigues, pensa a política como um emaranhado de jogos que se orientam por interesses, nem sempre muito nobres. Embora filosoficamente o primeiro esteja mais solidamente de acordo com os ideias republicanos que prezam a igualdade entre seres humanos e as liberdades individuais pelas quais muito sangue foi derramado em países europeus, como a França, é o segundo pensamento que parece representar mais o modo como se faz política na prática, quando nem sempre boas virtudes batem o martelo para algumas tomadas de decisões. 

Em tempos de eleições muitos textos são publicados nas redes sociais sobre os políticos candidatos, suas plataformas e planos de governo, as alianças formadas para garantir base de governança e os acordos fechados para que esses políticos alcancem sucesso no processo eleitoral. É notório que esses acordos e alianças, algumas vezes, chocam setores da sociedade e o eleitorado interessado no voto responsável. As alianças podem soar como tratados esdrúxulos, cuja intencionalidade é a conquista do voto dos cidadãos, custe o que custar.

Quero argumentar aqui em favor do entendimento de que essa realidade não é de todo mal. De modo muito simplificado, sugiro que se deve compreender que as alianças entre os partidos correspondem a meios de se conquistar o maior número possível de adesões à candidatura de um político. Essas adesões, entretanto, não ocorrem sem que se estabeleçam acordos em torno de pontos na agenda dos partidos (de ideologias e de lutas), as posições que requerem dentro dos futuros governos, as propostas do candidato que busca apoio e o plano de governo que pretende implementar. Isso é negociação e isso é política. 

Quanto maior for o número de adesões a um plano de governo negociado, que atenda a agenda de diferentes partidos interessados, maior a possibilidade de conquista de votos: maior o curral eleitoral. Durante esses arranjos alguns cargos políticos são pleiteados nesse processo, bem como outros são prometidos e isso interessa tanto a quem está buscando as alianças, quanto a quem contrai ou se dispõe a formá-las com o candidato em questão. Idealmente, se eleito o candidato terá ao seu lado uma base de aliados que lhe fornecerá condições para exercer a governança, o que na mídia aparece como “base de aliados”. Essa base teria a função de dar consistência ao governo por meio de apoio, por exemplo, em políticas e projetos de lei apresentados pelo do candidato eleito.

Assusta o eleitorado que candidatos de determinadas ideologias políticas se aliem a outros de posicionamentos muito diversos. Por exemplo, não parece coerente que alguém do reconhecido engajamento com a militância pelos direitos dos trabalhadores, como Lula, suba no mesmo palanque que Paulo Maluf, cujas deploráveis declarações contra os professores nas décadas de 1980, mostraram o quão pouco ele se importava com essa classe e com a educação. Esse caso, embora antigo, serve para ilustrar como o atual cenário político pede cautela na escolha dos presidenciáveis em outubro de 2014. A escolha de um candidato pede ser feita mediante criterioso exame das alianças que ele ou ela buscam para a formação da base e desenvolvimento do plano de governo.

Qual a razão dessa introdução? Simples. Parece-me que mais do que ocorreu em 2010, as eleições de 2014 estão colocando o tema religioso em absoluta evidência desde o primeiro turno. É possível que esse seja o tema decisivo nessa partida.

Com o falecimento de Eduardo Campos e a candidatura de Marina Silva, cuja pertença religiosa é declarada, a religião emergiu na cena política como importante ponto de pauta. Em parte, essa relevância se deve ao apoio que a candidata tem buscado (e encontrado) entre religiosos. Um apoio que não é apenas de neopentecostais, visto que Marina alcança a simpatia de muitos católicos mais conservadores. Essa candidata, por seu potencial de confrontamento com Dilma Rousseff, despertou o interesse da chamada bancada evangélica e de outros setores religiosos que não negociam questões como aborto, pesquisa com célula-tronco, casamento gay e outros.

Em defesa, esses setores recorrem ao direito constitucional de liberdade religiosa. Contudo, parecem ignorar que a liberdade religiosa dos tais, muitas vezes, se contrapõe a outras liberdades individuais igualmente legitimadas pela Constituição. Qualquer candidato que obtiver algum resultado positivo em pesquisas de intenção de voto terá de lidar com o público religioso e suas demandas. Isso é o que tem ocorrido na atual conjuntura política e que se pode observar, por exemplo, nos “passos atrás” que Marina tem dado nos seus discursos políticos.
 
Em 2010, a candidata indicava em termos tipicamente republicanos certo comprometimento com o debate público e democrático sobre as questões de gênero, direitos reprodutivos, pesquisa científica, direitos civis etc. Suas falas repousavam especialmente no ideal de uma política que se pautasse pelo desenvolvimento limpo e sustentável. Saída do governo PT, onde desempenhou a função de Ministra do Meio-Ambiente, ela ficou conhecida como alguém que teria enfrentado o problema do desmatamento, do uso irresponsável dos recursos naturais, as elites do agronegócio, entre outros. Suas posturas firmes alinhadas com ambientalistas teriam resultado na sua saída do ministério. Em 2010, ela surpreendeu as pesquisas e indicou que teria potencial junto ao eleitorado. Embora não tenha ido para o 2º turno, chegou a ameaçar o candidato do PSDB, então, José Serra.

Hoje, Marina ainda advoga as antigas causas que defendia pelo PV (Partido Verde), como o desenvolvimento econômico sustentável. Mas agora filiada ao PSB (Partido Socialista Brasileiro), não deixa de apontar propostas de reformas políticas, educação, inovação tecnológica, políticas públicas, segurança pública e, por fim, o que chama de “cidadania e identidades”. É um plano de governo generalista, mas que atende a intenção de responder em linhas gerais os princípios que nortearão as políticas de um eventual governo de Marina. Dentre outros pontos, ele aborda as principais questões do grupo LGBT (no eixo 6) e garante estar ao lado das lutas desse grupo, como de outras minorias como populações indígenas, de negros e mulheres (para quem dedica atenção nos eixos 3 e 4, além do 6) que sejam favoráveis à promoção dos direitos sociais e civis pela igualdade. Entretanto, ao que parece Marina tem recuado no debate sobre casamento civil igualitário, que o seu “Plano de ação” declara objetivar assegurar pelo combate à discriminação (p. 216). Esse recuo pode ser explicado à luz das mensagens de Silas Malafaia nas redes sociais (pastor da igreja Vitória em Cristo), que é claramente contrário ao casamento homoafetivo e afirma, em sua defesa, ser vítima de perseguição religiosa.

Entendo que o que veremos nas próximas semanas definirá os rumos da política nos próximos quatro anos. Como Marina reagirá à pressão da bancada evangélica e das lideranças religiosas conservadoras? Ela aderirá as reivindicações desses setores em troca de apoio para conquista da presidência? Ela será mais clara quanto aos seus posicionamentos ideológicos-políticos ou será norteada pelas suas convicções de fé? Ela continuará democraticamente aberta ao diálogo com os movimentos sociais, as militâncias, os sindicatos e as minorias, pela renovação dos ideias republicanos e fortalecimento da democracia no Brasil?

Não vejo ainda condições para responder essas questões. Mas percebo que o tema religioso e os argumentos que a bancada evangélica e outros setores religiosos têm mobilizado para pressionar Marina, Dilma e até o insípido Aécio Neves gravitam, também, em torno do direito de liberdade religiosa, que lhes autoriza a fazer esse tipo de pressão pelo que consideram essencial à manutenção do bem social. Nesse sentido, não estão equivocados, visto que o Estado laico deve garantir aos cidadãos condições iguais para participação política na esfera pública. Dizer que um “político poderá ter sua religião em caráter privado; durante mandato ou campanha, não pode negar direitos civis, baseado em princípios religiosos” – slogan que tem circulado nas redes sociais – não atina para o problema muito discutido nas ciências sociais e políticas quanto aos limites que definem o que é o público e o privado. Em termos gerais, o que se tem verificado é que essas fronteiras são móveis e tais esferas se constroem relativamente uma a outra. Portanto, não haveria como separar, no âmbito das relações sociais, políticas e culturais, as determinações constituídas no âmbito do privado. É ainda mais problemática a afirmação segundo a qual religião é assunto de foro íntimo. Já se sabe que em tempos de globalização, a religião é conjunto de crenças que se espraia por meio do mercado, como cultura, como identidade e, finalmente, como poder. Então, é mais do que consentir ou negar a participação de religiosos e seus preceitos na cena política: como representações políticas, imbuídas de ideologia e propostas, eles têm direito à participação. A questão que se deve coloca é: até onde a defesa dos direitos que interessam esse grupo pode solapar os direitos de outros cidadãos?

Trata-se de um problema, portanto, que articula questões de Direito, mas que somente se levantam porque abalam consensos sociais naturalizados ao longo de séculos, assentados sobre fundamentos de uma moralidade religiosa, a cristã. Uma moralidade difundida e solidificada mesmo entre pessoas que não se consideram religiosas. Malafaia sabe disso. Não à toa grita aos quatro ventos que o pensamento ocidental, que os Estados democráticos de direito e as sociedades modernas do eixo anglo-americano se construíram a partir de pressupostos judaico-cristãos: “vamos jogar tudo isso fora?” – pergunta o pastor.

Assim, volto ao meu primeiro ponto. As alianças não são de todo mal. Os políticos e os presidenciáveis têm o direito de articulá-las. Esse é o jogo político, jogado nos termos de uma esfera pública liberal. De alguma forma, as bases precisam ser construídas.

Entretanto, gostaria de chamar à atenção para o fato de que assim como religiosos têm o direito de construir suas bases e contrair suas alianças em prol de seus ideais, todos os cidadãos têm o direito de ter clareza a respeito de quais são os supostos ideológicos sobre os quais se fazem esses acordos, pois cientes de tais comprometimentos é que se pode levantar reais condições de análise e escolha das propostas para governo que mais se afinam com o que, cada cidadão, entende por mais premente e que, para a maioria, garante o bem esta social. Nesse sentido, para as tais bases  e alianças é que precisamos estar atentos nas próximas semanas.

Um governo que se projeta para o futuro e que conta com pessoas como Malafaia como um dos apoiadores, ao meu ver, não possui condições de governança que sejam positivas para o Estado brasileiro e a sociedade civil. Malafaia nunca foi e não é unanimidade nem mesmo entre os próprios evangélicos, que dirá entre todos os outros brasileiros? Será que vale tê-lo no time. Eu não o colocaria nem no banco!

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