As notícias sobre o fundamentalismo religioso evangélico
brasileiro estão se avolumando nos jornais e nas mídias sociais. Outro nome que
tem aparecido com frequência é terrorismo
evangélico, especialmente em razão do recente atentado contra o grupo Porta
dos Fundos. Esse episódio trouxe à tona outros tantos, de violência, de depredação
e de combate aos terreiros de candomblé e de umbanda, espalhados por todo o
país. A ação terrorista foi assumida por um grupo que se denominou “Comando
Insurgência Popular Nacionalista da Grande Família Integralista Brasileira”(fonte:
https://exame.abril.com.br/brasil/policia-investiga-grupo-integralista-que-assume-ataque-ao-porta-dos-fundos/).
A ação, tanto quanto o nome, são desprezíveis. Isso porque, primeiro, nenhum ato
de violência contra um grupo que expressa uma peça artística em meios públicos
pode ser censurado, ou recriminado. Ainda vivemos num país com direito de livre
expressão. E, em segundo lugar, porque o nome do grupo demonstra o tanto de
confusão que o mesmo carrega: o grupo se diz popular, afirma estar se
insurgindo contra alguém ou algo, afirma ser nacionalista/brasileiro (redundância),
além de integralista e da “grande família”. Que família? São tantos os modelos
de família que existem hoje em dia, a despeito do que essa moral pequeno
burguesa afirma todos os dias. Aliás, esse é o nome que provavelmente melhor
definiria o grupo, mas curiosamente não foi usado: Pequenos burgueses de
moralidade cristã medieval.
Mas, como afirmei recentemente em
um comentário à publicação de um amigo, o que me deixa desconfortável nessa
avalanche de notícias que dão conta do fundamentalismo religioso evangélico e, agora, terrorismo evangélico é
que, de um lado, não é, nunca foi e não deixará de ser essa uma prática
religiosa especialmente cristã: o combate ao que esse agrupamento considera
pagão, impuro e profano, dentre outros epítetos. Ao longo da história, pode se
observar que esse grupo diverso internamente, portanto, formado por pessoas de
distintas opiniões e formas de conduta religiosa, vem construindo a sua
tradição pela imposição de sua crença, de seus dogmas e de seus costumes aos
mais diversos povos, na América Latina, na África e na Ásia. Às vezes, com
presentes, às vezes, com a eliminação da alteridade. Essa é a conduta colonial
que tenta seduzir pela promessa de poder e que, na sequência, destrói predatoriamente
a cultura e os saberes do outro. Se nós jamais deixamos de ser colonizados,
como poderíamos suportar a emancipação e o pensamento livre como princípios de
uma moral não-cristã ou não-dominada pelo cristianismo?
Se eu concordo com isso? Claro
que não! Por outro lado, penso que é bastante improdutivo desprezar essa
trajetória ao tecermos nossas críticas às ações ignorantes de alguns religiosos.
É improdutivo porque para nós essa
história que desde sempre foi beligerante poderia ser, contemporaneamente, um instrumento
compreensivo com vistas à elaboração de ações de para a mudança desse quadro. Ficam
aí discutindo se a esquerda deve aproximar-se ou não dos evangélicos, quando na
verdade esse bonde já passou. E, possivelmente, porque a esquerda tão
inteligente não fez essa aproximação há 20 anos atrás, ocupando, conscientizando,
ampliando as bases e efetuando ações de politização das populações
empobrecidas, hoje, temos uma pátria dentro de outra: a pátria do povo de Deus,
menosprezado por nossa minúscula esquerda. Posso fazer essa crítica, aliás,
porque sou da esquerda e esse é um dos meus “lugares de fala” (para usar um
termo bem controvertido, mas bem usado por minhas companheiras feministas).
Na direção da compreensão desse
fenômeno social, o da beligerância religiosa, vale precisar os termos. Primeiro
deles, fundamentalismo religioso. Quanto a esse termo popularizado desde o
atentado de 11 de setembro às Torres gêmeas estadunidenses e realizado por um
grupo muçulmano, vale dizer que seu uso é geralmente bastante simplificado. Fundamentalismo
corresponde a um movimento, portanto, é social porque praticado por pessoas que
se baseiam num conjunto de ideias. Para as tais pessoas, essas ideias que podem
ser sobre a vida humana, sobre a criação do mundo, sobre a inquestionável
autoridade de uma divindade e sobre a irrefutável verdade dada numa revelação
escrita como o Alcorão ou a Bíblia são “fundamentos” da fé para a vida dessas
pessoas que formam um grupo.
Sobre esses fundamentos inegociáveis são
construídas tradições, costumes, entendimentos e posturas que orientam o grupo,
tanto espiritual como socialmente. Para certos fundamentalistas assegurar a
vivência desses fundamentos requer deles a separação do mundo. Para outros,
viver esses fundamentos requer mudar o mundo, requer, então, avançar sobre o
mundo e convencê-lo de que é preciso aceitar tais fundamentos. Uma terceira
postura seria a de que, se tais fundamentos não forem aceitos por bem, que
sejam pelo discurso coercitivo e ou pelo uso da força, ambos, violentos. O que
quase não é dito sobre fundamentalismo é que essa ideologia é um fenômeno
moderno, de origem norte-americana e protestante. O termo foi apropriado para
se falar da conduta de alguns muçulmanos, mas, originalmente, foi forjado por
protestantes que consideravam a existência de um só Deus, a sua revelação (a
Bíblia) e a Criação do mundo (feita por esse Deus), verdades inegociáveis.
Esses, dentre outros, seriam Os Fundamentos da fé cristã.
Mas em que esse entendimento nos
ajuda? Do ponto de vista compreensivo ele vale, porque nos mostra que o chamado
fundamentalismo, apesar de ser mais conhecido na sua vertente religiosa, é uma
conduta que se projeta a partir de ideias. Daí que existem muitos grupos
sociais cuja conduta é fundamentalista, mas que não são exatamente religiosos
porque não acreditam e não seguem aquilo em que se baseia a conduta cristã, que
é a fé num conteúdo mistérico. Esses grupos são fundamentalistas de outras
doutrinas, muitas delas políticas.
Com isso quero chegar na seguinte
afirmação: existem fundamentalismos que são políticos, de esquerda ou de
direita. E, o fundamentalismo político é que geralmente conduz ao terrorismo
caracterizado por ataques de extrema violência, com uso de armas de fogo e
bombas, por exemplo, por um grupo que apesar de ter uma ideologia faz uso de
máscaras.
Não parece ser bem representativo
que um grupo terrorista tenha nome, isto é, uma identidade, mas que não mostre
o rosto. Por que não mostrar o rosto? O que essa atitude significa? A ideologia
que impele esse grupo é inspirada nos fundamentos da fé cristã ou flerta com
elas apenas por oportunismo político, já que existe uma parte da população
bastante descontente com a imoralidade, com o comunismo, com esses(as)
abortistas, evolucionistas, gays, feministas, ecologistas e tantos outros “istas”
que ameaçam a ordem de Deus?
Assim como no século 20 foram
conhecidos episódios de terror protagonizados por grupos terroristas de
inspiração política, parece que que hoje se apresentam grupos de inspiração
religiosa, que do fundamentalismo passaram a empregar o terror a fim de serem
notados. Se esses grupos são de fato religiosos é que precisamos averiguar
cuidadosamente, pois um dos traços que define movimentos terroristas é o
oportunismo político. Diante de situações de tensão em que discursos de
oposição antagonizam à situação, o terrorismo emerge como ação de desestabilização
de políticos oportunistas. Não nos esqueçamos que a política é um jogo.
Políticos jogam com discursos, com narrativas e com imagens que tenham força,
que comovam e que mobilizem massas. Discursos e narrativas religiosas possuem
força e, no âmbito da sociedade brasileira, elas constituem valiosos recursos.
Daí a pergunta que intitula esse texto: estamos lidando com “terror evangélico”
ou “terror político”? Estamos lidando com evangélicos terroristas ou com
políticos oportunistas que buscam usufruir da base evangélica? E, por fim, quem
são os ícones evangélicos que legitimam esse discurso político em voga?
Meu ponto: os evangélicos possuem
suas verdades. Alguns as vivem segundo uma postura de separação, outros, de
evangelização. Existem também aqueles que são fundamentalistas, divididos entre
aqueles que não dialogam e aqueles que não dialogam e, ainda, são violentos.
Mas, se há ainda a modalidade terrorista, a facção da facção, suspeito que sua
origem seja mais fruto de oportunismo político do que fé-cega. O oportunismo de
uma poderosa elite classista, branca, misógina e que está no controle desse
país, desde que foi fundado. Essa elite pequeno-burguesa se vale do discurso
religioso, mas ela mesma só é religiosa quando lhe convém. Daí ela aparece nos
altares, nos púlpitos, nos espaços religiosos das mais diversas ordens. Daí ela
reconhece nesses lugares, os ícones que lhes servirão. Os ícones que lhes
ajudarão na manutenção da passividade, do controle social, da restauração dos
privilégios dessa classe.
De algozes, então, evangélicos
passam à peões.
Elisa Rodrigues
Princeton, 14 de janeiro de 2020.
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