“Terror evangélico” ou terror político?


Anonymous dijo que su compañeros arrestados pertenecen a un grupo español de hackers llamado Troy. (Foto: Reuters)
Anonymous Mascaras. In https://expansion.mx

As notícias sobre o fundamentalismo religioso evangélico brasileiro estão se avolumando nos jornais e nas mídias sociais. Outro nome que tem aparecido com frequência é terrorismo evangélico, especialmente em razão do recente atentado contra o grupo Porta dos Fundos. Esse episódio trouxe à tona outros tantos, de violência, de depredação e de combate aos terreiros de candomblé e de umbanda, espalhados por todo o país. A ação terrorista foi assumida por um grupo que se denominou “Comando Insurgência Popular Nacionalista da Grande Família Integralista Brasileira”(fonte: https://exame.abril.com.br/brasil/policia-investiga-grupo-integralista-que-assume-ataque-ao-porta-dos-fundos/). 

A ação, tanto quanto o nome, são desprezíveis. Isso porque, primeiro, nenhum ato de violência contra um grupo que expressa uma peça artística em meios públicos pode ser censurado, ou recriminado. Ainda vivemos num país com direito de livre expressão. E, em segundo lugar, porque o nome do grupo demonstra o tanto de confusão que o mesmo carrega: o grupo se diz popular, afirma estar se insurgindo contra alguém ou algo, afirma ser nacionalista/brasileiro (redundância), além de integralista e da “grande família”. Que família? São tantos os modelos de família que existem hoje em dia, a despeito do que essa moral pequeno burguesa afirma todos os dias. Aliás, esse é o nome que provavelmente melhor definiria o grupo, mas curiosamente não foi usado: Pequenos burgueses de moralidade cristã medieval.

Mas, como afirmei recentemente em um comentário à publicação de um amigo, o que me deixa desconfortável nessa avalanche de notícias que dão conta do fundamentalismo religioso  evangélico e, agora, terrorismo evangélico é que, de um lado, não é, nunca foi e não deixará de ser essa uma prática religiosa especialmente cristã: o combate ao que esse agrupamento considera pagão, impuro e profano, dentre outros epítetos. Ao longo da história, pode se observar que esse grupo diverso internamente, portanto, formado por pessoas de distintas opiniões e formas de conduta religiosa, vem construindo a sua tradição pela imposição de sua crença, de seus dogmas e de seus costumes aos mais diversos povos, na América Latina, na África e na Ásia. Às vezes, com presentes, às vezes, com a eliminação da alteridade. Essa é a conduta colonial que tenta seduzir pela promessa de poder e que, na sequência, destrói predatoriamente a cultura e os saberes do outro. Se nós jamais deixamos de ser colonizados, como poderíamos suportar a emancipação e o pensamento livre como princípios de uma moral não-cristã ou não-dominada pelo cristianismo?

Se eu concordo com isso? Claro que não! Por outro lado, penso que é bastante improdutivo desprezar essa trajetória ao tecermos nossas críticas às ações ignorantes de alguns religiosos.

É improdutivo porque para nós essa história que desde sempre foi beligerante poderia ser,  contemporaneamente, um instrumento compreensivo com vistas à elaboração de ações de para a mudança desse quadro. Ficam aí discutindo se a esquerda deve aproximar-se ou não dos evangélicos, quando na verdade esse bonde já passou. E, possivelmente, porque a esquerda tão inteligente não fez essa aproximação há 20 anos atrás, ocupando, conscientizando, ampliando as bases e efetuando ações de politização das populações empobrecidas, hoje, temos uma pátria dentro de outra: a pátria do povo de Deus, menosprezado por nossa minúscula esquerda. Posso fazer essa crítica, aliás, porque sou da esquerda e esse é um dos meus “lugares de fala” (para usar um termo bem controvertido, mas bem usado por minhas companheiras feministas).

Na direção da compreensão desse fenômeno social, o da beligerância religiosa, vale precisar os termos. Primeiro deles, fundamentalismo religioso. Quanto a esse termo popularizado desde o atentado de 11 de setembro às Torres gêmeas estadunidenses e realizado por um grupo muçulmano, vale dizer que seu uso é geralmente bastante simplificado. Fundamentalismo corresponde a um movimento, portanto, é social porque praticado por pessoas que se baseiam num conjunto de ideias. Para as tais pessoas, essas ideias que podem ser sobre a vida humana, sobre a criação do mundo, sobre a inquestionável autoridade de uma divindade e sobre a irrefutável verdade dada numa revelação escrita como o Alcorão ou a Bíblia são “fundamentos” da fé para a vida dessas pessoas que formam um grupo.

Sobre esses fundamentos inegociáveis são construídas tradições, costumes, entendimentos e posturas que orientam o grupo, tanto espiritual como socialmente. Para certos fundamentalistas assegurar a vivência desses fundamentos requer deles a separação do mundo. Para outros, viver esses fundamentos requer mudar o mundo, requer, então, avançar sobre o mundo e convencê-lo de que é preciso aceitar tais fundamentos. Uma terceira postura seria a de que, se tais fundamentos não forem aceitos por bem, que sejam pelo discurso coercitivo e ou pelo uso da força, ambos, violentos. O que quase não é dito sobre fundamentalismo é que essa ideologia é um fenômeno moderno, de origem norte-americana e protestante. O termo foi apropriado para se falar da conduta de alguns muçulmanos, mas, originalmente, foi forjado por protestantes que consideravam a existência de um só Deus, a sua revelação (a Bíblia) e a Criação do mundo (feita por esse Deus), verdades inegociáveis. Esses, dentre outros, seriam Os Fundamentos da fé cristã.

Mas em que esse entendimento nos ajuda? Do ponto de vista compreensivo ele vale, porque nos mostra que o chamado fundamentalismo, apesar de ser mais conhecido na sua vertente religiosa, é uma conduta que se projeta a partir de ideias. Daí que existem muitos grupos sociais cuja conduta é fundamentalista, mas que não são exatamente religiosos porque não acreditam e não seguem aquilo em que se baseia a conduta cristã, que é a fé num conteúdo mistérico. Esses grupos são fundamentalistas de outras doutrinas, muitas delas políticas.

Com isso quero chegar na seguinte afirmação: existem fundamentalismos que são políticos, de esquerda ou de direita. E, o fundamentalismo político é que geralmente conduz ao terrorismo caracterizado por ataques de extrema violência, com uso de armas de fogo e bombas, por exemplo, por um grupo que apesar de ter uma ideologia faz uso de máscaras.
Não parece ser bem representativo que um grupo terrorista tenha nome, isto é, uma identidade, mas que não mostre o rosto. Por que não mostrar o rosto? O que essa atitude significa? A ideologia que impele esse grupo é inspirada nos fundamentos da fé cristã ou flerta com elas apenas por oportunismo político, já que existe uma parte da população bastante descontente com a imoralidade, com o comunismo, com esses(as) abortistas, evolucionistas, gays, feministas, ecologistas e tantos outros “istas” que ameaçam a ordem de Deus?

Assim como no século 20 foram conhecidos episódios de terror protagonizados por grupos terroristas de inspiração política, parece que que hoje se apresentam grupos de inspiração religiosa, que do fundamentalismo passaram a empregar o terror a fim de serem notados. Se esses grupos são de fato religiosos é que precisamos averiguar cuidadosamente, pois um dos traços que define movimentos terroristas é o oportunismo político. Diante de situações de tensão em que discursos de oposição antagonizam à situação, o terrorismo emerge como ação de desestabilização de políticos oportunistas. Não nos esqueçamos que a política é um jogo. Políticos jogam com discursos, com narrativas e com imagens que tenham força, que comovam e que mobilizem massas. Discursos e narrativas religiosas possuem força e, no âmbito da sociedade brasileira, elas constituem valiosos recursos. Daí a pergunta que intitula esse texto: estamos lidando com “terror evangélico” ou “terror político”? Estamos lidando com evangélicos terroristas ou com políticos oportunistas que buscam usufruir da base evangélica? E, por fim, quem são os ícones evangélicos que legitimam esse discurso político em voga?

Meu ponto: os evangélicos possuem suas verdades. Alguns as vivem segundo uma postura de separação, outros, de evangelização. Existem também aqueles que são fundamentalistas, divididos entre aqueles que não dialogam e aqueles que não dialogam e, ainda, são violentos. Mas, se há ainda a modalidade terrorista, a facção da facção, suspeito que sua origem seja mais fruto de oportunismo político do que fé-cega. O oportunismo de uma poderosa elite classista, branca, misógina e que está no controle desse país, desde que foi fundado. Essa elite pequeno-burguesa se vale do discurso religioso, mas ela mesma só é religiosa quando lhe convém. Daí ela aparece nos altares, nos púlpitos, nos espaços religiosos das mais diversas ordens. Daí ela reconhece nesses lugares, os ícones que lhes servirão. Os ícones que lhes ajudarão na manutenção da passividade, do controle social, da restauração dos privilégios dessa classe.
De algozes, então, evangélicos passam à peões.


Elisa Rodrigues
Princeton, 14 de janeiro de 2020.

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