A corrida eleitoral e a batalha espiritual

Em tempos de mídias sociais, blogs, vlogs, portais de artigos científicos disponíveis em formato PDF, repositórios de dissertações de mestrado, teses doutorais e trabalhos de livre docência, dentre outros materiais de estudo e pesquisa, todos, disponibilizados na internet para acesso rápido, eu ainda repouso entre livros, textos e cadernos de notas. É engraçado e confuso, confesso. Engraçado, porque não me sinto tão velha e antiquada; confuso, porque recuperar a informação para dar andamento à redação de algo acaba sendo uma tarefa mais demorada. E é esse o problema: não temos mais tempo. Não há tempo para ler, não há tempo para se pausar a leitura e compreender o que se lê, sobretudo, não há tempo para avaliarmos o produto de nossas leituras, isto é, a nossa escrita, a fim de refletirmos se o que escrevemos faz sentido, se é relevante, se responde a uma questão central e socialmente pertinente.

Mas, enfim, toda essa minha lamúria inicial é somente para justificar minha reação quase visceral a um vídeo publicado pelo canal Meteoro Brasil e disponível no site Youtube. Como dizem os apresentadores “você pode ver o vídeo, mas só se quiser e se puder”. Eu, de minha parte, recomendo fortemente que o conteúdo do vídeo a seguir seja visualizado, ouvido e digerido com atenção. O link é esse aí: https://www.youtube.com/watch?v=WlZvzLTn-xY e a manchete que o apresentador anuncia é a seguinte: “Quem são os demônios de Michelle Bolsonaro?”. Até meu último acesso para conferir a e-referência, o vídeo já havia sido visualizado 203.690 vezes, em 8 de agosto de 2022. E, sinceramente, penso que isso é incrível. Especialmente, porque parte do que o vídeo aborda de modo sintético, objetivo e competente é a existência de uma relação entre “corrida eleitoral” e “batalha espiritual”.

Print da tela de apresentação. Link: https://www.youtube.com/watch?v=WlZvzLTn-xY

O vídeo argumenta que em nome da re-eleição de Jair Messias Bolsonaro, a coordenação da campanha eleitoral do atual presidente tem apostado na figura de Michelle Bolsonaro, a esposa evangélica que além de assegurar o eleitorado crente do atual presidente, de algum modo, poderia despertar simpatia numa fatia da população que tem demonstrado significativa rejeição a Bolsonaro: o eleitorado feminino. Também, pudera! Como votar em alguém que sequer sabe definir o significado da palavra misógino.

Mas, retomando o fio, o que me provocou nesse vídeo é a assertiva relação que descrevi acima: corrida eleitoral e batalha espiritual. Não apenas porque são expressões que rimam, mas fundamentalmente porque “a batalha espiritual” é uma expressão do léxico religioso cristão que é recorrentemente acionada para se referir ao conflito inevitável entre “os de dentro” e os “de fora”, isto é, “os filhos de Iahweh/Deus” (com d maiúsculo) versus “os filhos de Belial”, uma divindade do Antigo Mediterrâneo interpretada como inimiga do Deus de Israel. Segundo as fontes bíblicas do Antigo Testamento, as pessoas que seguiam Belial eram infiés e deveriam ser aniquiladas sob o fio da espada, visto que seriam inimigas DEle, Iahweh, e de seu povo: o povo escolhido, o povo eleito, o povo santo de Deus. Todos esses epítetos interessantíssimos, sobre os quais eu falaria horas.

Noutras palavras, a batalha espiritual entre os filhos de Iahweh e os filhos de Belial corresponderia a batalha entre luz e trevas, entre anjos e demônios, entre Deus e o Diabo. Simbolicamente, batalhas entre o povo de Israel e os outros povos foram retratadas como travadas no Vale do Megido, também conhecido sob a alcunha de Armagedom. Não. Armagedom não é simplesmente o título do filme estrelado por Ben Affleck, Bruce Willis e Liv Tyler, filha de Steve Tyler, cuja música tema “I don’t wanna miss I thing” executada pela banda de rock Aerosmith embalou romances épicos ao final dos anos 1990. Armagedom é um lugar bíblico onde batalhas foram travadas em nome de Deus: em nome da sua exaltação sobre todas as outras divindades mediterrâneas e em nome da exclusividade de seu povo.

Qual a relevância dessa digressão bíblica?

Na verdade, esse retorno à mitologia judaico-cristã serve-nos como instrumento para compreensão de algo que venho tratando nas minhas disciplinas e cursos sobre Pentecostalismo. A perspectiva religiosa pentecostalizada do mundo divide-o entre bem e mal.

Basicamente, essa visão do mundo materializa-se numa espécie de geografia mítica, segundo a qual os conflitos, as tensões, sobretudo, as perseguições espirituais se concretizariam no mundo físico – material – dando origem aos problemas, às mazelas e às perseguições “reais” que afligem os filhos de deus na terra. Por isso, os crentes de hoje tanto quanto os filhos de Israel – povo escolhido – são alvos da perseguição. Por isso, os crentes de hoje, assim como no passado, devem guerrear em nome da verdade de seu Deus. O Deus cristão.

Ora, vez por outra, vocês já devem ter ouvido ou visto o atual presidente reclamar que a sociedade brasileira, uma sociedade cristã, conforme ele afirma, não pode admitir a derrota de seus valores. Derrota que é representada pelo comunismo, pela ideologia de gênero, pela classe artística e redes de comunicação que querem acabar com a família brasileira. Pois bem, é exatamente nesse ponto, que a perspectiva religiosa pentecostalizada baseada nas fontes bíblicas judaico-cristãs, as quais originam essa geografia mítica, que o repertório evangélico da atual primeira dama pode fazer algum sentido para muitos brasileiros e brasileiras. Não apenas aqueles e aquelas sob a rubrica pentecostais.


Sim, essa perspectiva de mundo está disseminada em nosso cotidiano social na forma de um tipo de cultura religiosa cristã. Não raramente essa “ótica” de mundo interpreta problemas sociais como resultado de perseguições do mundo espiritual. Logo, assim como espíritos obsessivos que necessitariam ser exorcizados, os comunistas precisariam ser aniquilados. Como gestualmente o atual presidente demonstrou: metralhados e, como redes sociais bolsonaristas retratam (vide a imagem ao lado). 

Eis como a violência da mitologia bíblica pode ser acionada para justificar o injustificável: a agressão, a intolerância e o combate a tudo e a todos(as) que representarem ameaça ao que julgam ser a verdade única e o fundamento exclusivo. Neste caso, aquilo pelo qual julgam ser necessário lutar, ou seja, “a família nuclear cristã”, “os cidadãos de bem”, “a distinção binária dos gêneros”, “a educação formal técnica” (e não libertária), “o mercado liberal”, “o Estado mínimo” etc., etc., etc. Noutros termos, segundo essa visão, a ameaça vermelha precisa ser detida e nada mais adequado para a defesa desse Estado cristão que as orações de uma mulher de Deus, submissa ao marido, recatada e do lar. Não subestimem a potência da religião e o alcance do simbolismo. Ela é sentido, ideologia e prática. Não tão somente ópio. Tampouco somente ilusão. Ela é material e sua sanha pelo poder é igualmente material.

Dito isso, desculpem-me o texto apressado e sem referências. Mas como mencionei lá no início, em tempos de internet e mídias sociais, nem sempre temos tempo hábil para deixar os pensamentos se assentarem e florirem. Às vezes, precisamos responder assertivamente e exaltar conteúdos qualificados como os do Meteoro Brasil. A divisão do mundo entre "nós" e os "outros" tem sido denominada fascista contemporâneamente, mas meu ponto é que religiosamente, essa divisão existe desde tempos imemoriais. Portanto, para algumas pessoas simplesmente dizer que o bolsonarismo é fascista não leva a muita coisa. Se o presidente não sabe o que é misógino, será que seus/suas eleitores(as) saberiam definir o que é fascismo?

Por outro lado, o recurso ao simbolismo bíblico pode ser tão frutífero para quem defende a democracia, as liberdades individuais e as diversídades étnico-raciais, culturais e de gênero, quanto o é para quem defende a ideia de um mundo dividido entre o bem e o mal. Bastaria, talvez, relembrar ao povo crente que aquele Israel da Bíblia que lutava para sobreviver entre as civilizações do Mediterrâneo Antigo foi também o Israel que profetas chamaram ao arrependimento, para que não se esquecesse de seus pobres, de suas crianças e de sua viúvas. Foi o povo do qual descendeu Jesus de Nazaré, chamado Messias por alguns. Esses Jesus que nunca pegou em armas, que andava por entre as gentes mais humildes e pregava um reino de paz e justiça para todos e todas.


Elisa Rodrigues
Doutora em Ciência da Religião e em Ciências Sociais. Professora no Departamento de Ciência da Religião na Universidade Federal de Juiz de Fora.

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