Recentemente, lendo textos, comentários e posts na Web a respeito das últimas manifestações de 15 de março fiquei surpresa com a recorrência, similaridade ou simples reprodução de noções e supostos que em alguma medida pensei que a história havia superado. Pensando bem, acho que ainda não ultrapassamos o capítulo “Tradição, Família e Propriedade”.
Sem recorrer a datas, textos
históricos e ou matérias jornalísticas sobre esse tópico, proponho uma reflexão
irônica sobre o que representa essa sigla, “TFP”. Quando ela foi criada
abrigava pessoas que professavam como conjunto de crenças e valores uma
tradição religiosa cuja moral cristã seria norteadora de suas condutas e
decisões, das privadas até as públicas. Entendia-se que essa tradição era
suficiente, senão a única, capaz de resguardar a família brasileira. Essa
família, que fique claro, a verdadeira, formada por homem, mulher e filhos
biológicos, legítimos, planejados ou não. A tradição era, portanto, a âncora de
salvação da família. Essa família “normal”, abençoada por Deus e tesouro da
criação. Estou referindo-me à tradição cristã sobre a qual, claro, não tenho
nada contra. Tenho apenas “contra” que ela seja eleita única, verdadeira e universal.
Se um ponto leva a outro, como garantia
de que a tradição religiosa cristã não fosse esvaziada de sentido, a sociedade fosse
secularizada e o Estado laico avançasse rumo ao ateísmo, a TFP emergiu na condição
de grupo de senhores honrados e senhoras piedosas, unidos para assegurar a
moral e os bons costumes. Cabe dizer que essa moralidade que ordenaria o mundo e
colocaria as coisas em seus devidos lugares proclamava ou não entrevia problema na
hierarquia social, afinal, nada mais natural que algumas pessoas ascendam
socialmente, enquanto outras façam o papel de “degrau”! Uns nasceram para a
salvação, outros para perdição. As classes sociais, pois, estão justificadas:
uns foram eleitos para serem ricos, outros pobres. A família pequeno-burguesa nada
mais seria que uma família abençoada porque estruturada com base nas premissas da
correta tradição: 1) o homem é a cabeça da família, o chefe; 2) a mulher é a
esposa submissa e cuidadora do lar e dos filhos; 3) crianças saudáveis são
aquelas sustentadas pelos pais e educadas pelas mães, que ficam em casa zelando
virtuosamente pelo bem-estar da família. Daí que uma família tão bem edificada
somente poderia gozar de sucesso. Sucesso que se traduz materialmente em “propriedade”.
Por isso, tão somente por causa
disso, os discursos pluralistas, liberais e progressistas ameaçam a sociedade.
Eles seriam (são ou serão?) capazes de ruir os pilares sobre os quais se
assentam as famílias de tradição cristã, cujas vidas equilibradas são
exemplares. Aliás, a mobilidade social não seria uma questão de engajamento
político se todos simplesmente aderissem a essa tradição religiosa e seu padrão
de moralidade!
Mas, então, surgem os “filisteus”
com seus novos modelos de núcleos familiares, com suas propostas de celebração
da diversidade religiosa, com seus discursos de respeito pelas diferenças
culturais e étnicas, com suas causas e defesas do direito a escolha individual
e, finalmente, com suas “abusivas” críticas à injustiça e desigualdade social!
Nada disso seria preciso se todos fossem cristãos... Sim, porque se todos
fossem bons, não haveria necessidade de crianças tão novas serem levadas para
creches, tampouco seria preciso construir creches. Bastava que ficassem em casa
cuidando de seus afazeres domésticos, que elas, essas mulheres, não seriam
desrespeitadas no trabalho, nas faculdades ou nas ruas. Se estivessem cumprindo
exemplarmente seus destinos, vestindo-se adequadamente e não tomando o lugar de
pais de família em empresas, fábricas e táxis, não seriam estupradas,
violentadas, agredidas e assassinadas por seus donos, quero dizer, maridos.
É, o mundo vai acabar. Crianças
desorientadas fazem escolhas desorientadas. Por isso, tantos homossexuais, travestis, transexuais,
bissexuais... Se a norma fosse seguida, isto é, a heteronorma fosse mantida, a
sociedade não seria esse retrato de decadência! (Por favor, não encerrem a
leitura por aqui).
Usei a ironia como recurso nesse
texto apenas para levantar uma questão: essas noções e supostos ironicamente alinhavados
acima não seriam os mesmos ou, talvez, quase os mesmos que dão liga ao que a FPE
propõe nas pautas que tem articulado?
Não responderei minha questão.
Ela é retórica. Apenas direi a esse respeito que, hoje, para mim, a “Frente
Parlamentar Evangélica” expressa um segmento da sociedade que não é constituído
apenas de religiosos cristãos. Há muito mais lá dentro e me ocorre que essa miscelânea
de gente que está se alinhando em torno da FPE coaduna, compartilha e consente
com alguma das noções que ironizei acima. Não à toa toda a esquerda (ou
possibilidade de discursos de esquerda) tem sido hostilizada, pois o contraponto é
sempre desnorteador. O que se pensou estar saindo de cena, em prol de discursos
pela igualdade social, liberdades individuais, consciências críticas e uma esfera
pública moderna iluminada pela razão, parece nunca ter movido sequer um pé.
Estava lá, apenas aguardando o momento de retomar seu lugar de direito: o
centro.
Foi esse o gigante que acordou?
Chama-me a atenção ainda que essa
massa de gente que não é homogeneamente religiosa e muito menos toda ela
cristã, age segundo uma gramática que se expressa em termos religiosos, seja no
vigor com que vai para rua, seja na maneira como grita as suas verdades. Essa
massa descontrolada age de modo intolerante, quando estávamos iniciando o
trajeto de promoção da tolerância; ela não é capaz de aceitar diferentes pontos
de vista, quando apenas iniciávamos o processo de convivência com a alteridade;
ela não suporta o entre-lugar, o trans ou o hetero, quando apenas recentemente
se começou a perceber que entre o preto e o branco existem gradações.
O que me leva a pensar que não
importa se TFP ou FPE, não importa se a palavra “Tradição” foi substituída pelo
termo “Evangélica”. Importa que há um clima difuso de endurecimento nos
discursos políticos (de direita e esquerda), religiosos (conservadores e
liberais) e moralistas (crentes e descrentes) que não acata a possibilidade de
diálogo, de escuta e de reestruturação dos posicionamentos, se necessário, em
prol do bem-comum.
Pior do que a indisposição para o
diálogo é a vontade de suplantar o discurso do outro pela força, o que leva à
violência física e simbólica. Pouco a pouco, cada vez menos estranhamos
absurdas conversas como as que seguem abaixo:
- Morreu o menino que foi agredido na escola? Ah, isso não aconteceria
com ele se tivesse pais normais...
- A professora foi agredida pelo aluno. Também, se ela se portasse
melhor e não usasse aquelas roupas, talvez, fosse mais respeitada!
- Isso é o que dá ter mulher no governo! Lugar de mulher é na cozinha.
- Bolsa família? É bolsa para sustentar preguiça de gente que não quer
trabalhar.
- Sabe por que tem tanto negro na favela? Porque não gostam de
trabalhar...
É tanto absurdo, né? Deveria soar absurdo. Mas para muitos é isso apenas. Minha expectativa é que
tradição e ou propriedade não fiquem acima das pessoas. E para que isso aconteça, penso que precisamos valorizar o poder das ideias, porque elas se concretizam em atitudes.
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