Você já parou para refletir sobre
o que representa a expressão “ideologia de gênero” que ultimamente tem sido
publicada nas redes sociais?
Parece-me que vale um tempo de
reflexão sobre o que ela pretende expressar. A primeira coisa importante,
então, seria entendermos o que sinaliza o termo ideologia. Sobre essa palavra
que já é tão usada em nosso dia-a-dia e que pode ser tomada, inicialmente, como
um conjunto de ideias sobre algum assunto. Se aprofundarmos um pouco mais o
entendimento sobre ideologia, podemos afirmar que se trata de um conjunto de
ideias sobre algum assunto a respeito do qual, um indivíduo ou grupo de indivíduos,
assenta convicções e práticas políticas que orientam a sua vida social. Até aí
tudo bem. As pessoas podem sustentar diferentes tipos de ideologias e a partir
delas orientarem suas vidas. Mas devemos atentar para o fato de que se uma
ideologia for tomada como único, verdadeiro e absoluto ponto de vista sobre os
outros, corre-se o risco perder de vista que existem outros pontos de vista legítimos,
com base nos quais as pessoas podem construir suas opiniões.
Quando uma ideologia é tida como
exclusiva, aí pode-se dizer dela que é alienante, porque priva a pessoa ou
grupo de pessoas que a ostenta de outras possibilidades de interpretação da
realidade social.
Tomando por base essa compreensão
de ideologia, passemos ao segundo ponto, o que vem a ser gênero.
Diz-se da espécie humana que é
dividida em dois gêneros: o masculino e o feminino. Seriam duas classes
diferentes, uma que agrupa homens e outra mulheres, listadas conforme
características comuns. As tais características seriam definidas pelo que seria
próprio ao homem e a mulher, mas isso se definiria prioritariamente pelo
aparelho sexual: homens têm pênis, mulheres têm vagina. Daí que todos os outros
traços da psiquê, do comportamento e da conduta social de homens e mulheres se
definiriam com base nesse argumento que é tão somente biológico. Mas, então, o
que se pode dizer de homens que possuem pênis, mas pensam e se sentem mulheres
e mulheres que têm vagina, mas pensam e sentem tal qual homens? Outra pergunta:
o que dizer de pessoas que nascem com um aparelho reprodutor feminino, mas a
genitália masculina? Ora, nesses casos, o gênero da pessoa somente poderá ser
definido diante sua escolha e no momento em que tiver condições emocionais para
tomar tal decisão.
Embora esses dois casos sejam
poucos em face da quantidade de situações que exibe a vida cotidiana e que
espelham questões sérias sobre os gêneros e a sua definição, elas nos servem
como indicativos que nos ajudam a desconstruir a simples classificação binária
de gênero masculino/feminino. O ponto de vista segundo o qual masculino e
feminino se distingue apenas em função da correspondência entre aparelho
reprodutivo e genitália, uma de homens/machos e outra para mulheres/fêmeas, não
suporta ambuiguidades dentro do esquema binário masculino e feminino. O que
fazemos com esses casos, então?
Em algumas culturas, essas ambiguidades
eram amaldiçoadas. No caso do judaísmo antigo, por exemplo, aqueles cujos
órgãos reprodutivos fossem mutilados, especialmente homens, ou que
manifestassem outro gosto no uso de sua genitália – que não correspondesse à
relação homem-mulher, de coito, com finalidade de procriação –, era considerado
impuro. Na condição de impuro, ele não poderia integrar a comunidade religiosa,
pois não corresponderia ao padrão de perfeição exigida pelo seu Deus Yahweh. Tal
padrão cumpre o desígnio de Deus que teria criado homem e mulher, segundo sua
própria imagem, para que se reproduzissem e governassem a terra. Fora desse
parâmetro, homem e mulher não cumpririam sua missão no mundo. Aquele que
desejasse agradar Yahweh, no antigo judaísmo, deveria atinar para o que dizia a
Lei dele. Caso contrário, seria considerado impuro.
Esse entendimento é o mesmo na
Bíblia cristã (católica e protestante/pentecostal). Isso porque 1) cristãos e
judeus compartilham o Antigo Testamento e 2) Jesus, em que acreditam os
cristãos, era ele mesmo um judeu. Consequência, a religiosidade e a cultura de
cristãos e judeus apresentam muitos pontos em comum, dentre os quais: o
entendimento de que a função do casamento é unir homem e mulher, a fim de constituírem
família e procriarem: “Assim Deus criou o
homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; macho e fêmea os criou... Deus os
abençoou e lhes disse: Sejam férteis e multipliquem-se! Encham e subjuguem a
terra!” (Gênesis 1:27-28). Esse, portanto, é um postulado cristão. Sobre
ele se assenta a crença que existem apenas dois gêneros e dele depende a
sobrevivência da espécie humana. Essa espécie que teria sido criada pelo Deus
único, Criador de céus e terra. Trata-se de um postulado porque não se pode
comprová-lo. Em torno da crença em Deus pode até haver um consenso inicial, mas
não partilhado por todos e todas.
Fiz esse percurso, a fim de
sustentar que dada a complexidade desse assunto, a recente expressão “ideologia
de gênero” criada por religiosos cristãos – de maioria pentecostal, mas não só –
defende a distinção homem/mulher com base numa crença que não é partilhada
igualmente por todos e todas. O passo seguinte, a afirmação de que a
homossexualidade pode vir a acabar com a família (no modelo cristão) é apenas
um desdobramento disso. Por isso, seria uma ameaça. Contudo, uma ameaça
legítima apenas segundo o entendimento cristão do que seja a função de homens e
mulheres e forma ou modelo mais “correto” de família.
Diante desse quadro, aqui pintado
brevemente, vale a pergunta: qual grupo tem uma ideologia de gênero que se opõe
a outras formas de entendimento da realidade?
Para dizer claramente onde
pretendo chegar, se todos os planos de educação, os projetos de lei e os
documentos que em seus textos apresentarem a palavra gênero estiverem
expressando subliminarmente uma ideologia funesta que visa destruir as famílias
pelo enfraquecimento da definição homem/mulher, sim, aí teríamos uma perigosa
ideologia. Talvez, uma ideologia cuja utopia seria uma sociedade formada de
pessoas gays ou quem sabe pessoas assexuadas, por que não? E, sim, o desdobramento
disso seria o fim da humanidade ou quem sabe, uma humanidade criada in vitro. O que parece ficção,
entretanto, se confunde com crença, daquelas irrefutáveis que ameaçam não a todos, mas a alguns. Dito de outra forma:
quando religiosos se alinham em torno da defesa da binariedade masculino e
feminino, da família e da moralidade cristã como único paradigma de
interpretação do mundo, estão a defender uma “ideologia de gênero”: a ideologia de alguns...
Se a Constituição brasileira prevê como direito fundamental, a inviolabilidade da liberdade de crença e de consciência, vale lembrar que tal inviolabilidade se desdobra em três: 1) liberdade de consciência - convicção, valores e escolhas -, 2) liberdade de religião - de aderir ou não a uma religião -, 3) e liberdade de culto. A laicidade é a maior garantia de que essas liberdades poderão ser exercidas integralmente.
Quando há conflito de direitos e o exercício dessas liberdades se ameaçam mutuamente pela incompatibilidade, por exemplo, entre um tipo de consciência e uma modalidade de crença religiosa, o que deve prevalecer, senão que: "Todos
são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza" (Art. 5º da Constituição de 1988)? A prevalência do ponto de vista de um grupo não denuncia que está sendo beneficiado em detrimento de todos os outros? Quando a palavra gênero é retirada dos planos de educação, dos projetos de lei e de documentos importantes que visam construir uma sociedade igual para todos e todas, quem se beneficia? Qual ideologia se sobrepõe a todas as outras impedindo que outros pontos de vista exerçam influência na construção de um Estado democrático de real pluralismo político?
Penso que diferente dessa binariedade seria simplesmente o entendimento que a igualdade entre homens e
mulheres, seus direitos e deveres, passa pela construção de uma sociedade em
que as pessoas possam exercer autonomia e suas liberdades individuais,
independente de serem homens ou mulheres: nem preto, nem branco ou, nem tão azul, nem tão rosa! Diferente disso seria avançarmos em
direção a uma sociedade em que mulheres e homens pudessem ocupar espaços,
desenvolver suas funções e fossem reconhecidos pelo mérito de suas ações, pelo
potencial e pela capacidade que possuem e pela dignidade peculiar da sua humanidade
que lhes reserva os mesmos direitos e deveres, independente do gênero com o
qual se identificam ou não.
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