Do assédio ao ensino religioso



A audiência pública no STF realizada no último dia 15 de junho, a fim de discutir com diferentes partes interessadas, a ADI 4439 que discorre sobre a inconstitucionalidade do ensino religioso confessional tem sido sistematicamente tratada como audiência para discussão da inconstitucionalidade do ensino religioso.

Essa manobra hermenêutica utilizada pelos contrários ao ensino religioso desvirtua o ponto central da matéria em discussão, qual seja, o caráter não constitucional do ensino religioso de viés confessional, inter-confessional e ou ecumênico. Assim sendo, o entendimento do qual parte a discussão convocada pelo ministro Luís Roberto Barroso, na Procuradoria Geral da República, é de que o ensino religioso de matrícula facultativa ao aluno e a aluna deve ser ofertado nas escolas públicas segundo uma perspectiva atenta ao pluralismo de ideias e à diversidade religiosa, respeitando as liberdades individuais de crença e de ideologia e, vedando qualquer forma de proselitismo ou catequese.

Roseli Fischmann, como se sabe, milita há décadas contra o ensino religioso na escola pública laica. Na defesa de sua posição, em geral, serve-se de argumentos jurídicos para justificar a inadequação dos conteúdos relativos à religião ao sistema de educação nacional. Assim, mobiliza a ciência interpretativa a favor de seus argumentos, como se vê no artigo publicado pelo Jornal Estadão “Assédio a escola pública”, de 4 de julho de 2015 (Disponível em: http://alias.estadao.com.br/noticias/geral,assedio-a-escola-publica,1718985#. Acesso em 07 de jul. 2015).

Além da menção deslocada logo no topo do artigo, a Marco Feliciano, por quem, obviamente, todos e todas que querem manter os direitos humanos, as conquistas feministas e as discussões de gênero ativas, não possuem muita simpatia, Fischmann assegurou que o primeiro ponto da ADI 4439 referia-se “à inconstitucionalidade do Art. 33 da Lei n. 9394/96, regulamentações existentes, e o que se tem feito a título de cumprir esse dispositivo”, de maneira inconsistente se observado o documento entregue à Procuradoria Geral da República, no qual se solicita que a “Corte” realize interpretação fundada no art. 33 da lei n. 9394/96, no sentido de “assentar que o ensino religioso em escolas públicas só pode ser de natureza não-confessional, com proibição de admissão de professores na qualidade de representantes das confissões religiosas” (Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/geral/verPdfPaginado.asp?id=635016&tipo=TP&descricao=ADI%2F4439. Acesso em 07 de jul. 2015, p.1).

Na sequência desse documento é indicado que além do ensino religioso confessional (católico e de outras confissões) também o inter-confessional ou ecumênico não estariam de acordo com os conteúdos da Carta Constituinte e da LDB, pois esses últimos modelos, mesmo que não se voltassem para a promoção de uma confissão específica, teriam por propósito “inculcar nos alunos princípios e valores religiosos partilhados pela maioria, com prejuízo das visões ateístas, agnósticas, ou de religiões com menor poder na esfera sócio-política” (Idem, p.3). O texto oficial segue com fundamentação orientada pelo trabalho da antropóloga Débora Diniz.[1]

Num artigo de jornal, portanto, limitado, que pretende tematizar a ADI 4439, a menção relativa ao Projeto de Lei do Pastor Marcos Feliciano, de novembro de 2014, logo de início, parece evocar outro rumo ao debate, ou, estrategicamente, vincular o ensino religioso apenas aos modelos proselitistas, catequéticos e que priorizariam a moralidade de uma maioria cristã. Seria esse um estratagema?

Sem dúvida, esse PL não atende ao que prevê o artigo 210, 1º parágrafo da Constituição, tampouco o que prescreve o artigo 33 da LDB, lei n. 9394/96. Aliás, essa última, diga-se de passagem, sob a nova redação dada pela lei n. 9475/97, com dois parágrafos que atribuem aos Estados a elaboração de currículos, a oferta de formação continuada para docentes e consulta a entidades civis para elaboração dos tais currículos. Não compete-nos aqui dizer que esse PL é inconstitucional, apesar de sabermos que o é, mas parece justo indicar que não era esse PL que estava em discussão no dia 15 de junho, mesmo que tenha sido lembrado por algumas ilustres representações religiosas que tiveram lugar na audiência.

Os argumentos de base jurídica atentam para a lógica da lei, cuja letra explicita como um valor irrevogável a laicidade do Estado. Cabe a esse Estado que não se pronuncie em matéria de fé religiosa, subvencionando ou privilegiando um credo em detrimento de outros. Assim, na qualidade de laica, a escola pública não deve manifestar-se em favor de crenças específicas. Deriva desse entendimento a inconstitucionalidade de qualquer forma de ensino religioso que seja de cunho religioso. Mas diferente do que afirma Fishmann o “ganho histórico para o Estado, comunidades religiosas, sociedade e em especial as escolas” não é determinar inconstitucional o que “aí está”, mas determinar como inconstitucional toda forma de ensino religioso que seja confessional, inter-confessional e ou ecumênica. Esse é o espírito da lei. Não se trata de declarar não constitucional o ensino religioso, mas as formas de tematizar a religião na escola que não atentem para esse componente curricular como lugar para a construção de um conhecimento de especificidade histórica, social e cultural que constitui identidades, etnicidades e grupos sociais que compõem nosso Estado e sociedade civil. As religiões, portanto, como culturas, como linguagem, como arte, como conjunto de crenças, como sentido, como formas de ordenamento individual e coletivo, que expressam-se por meio de narrativas míticas, rituais, códigos de usos e condutas etc.

Mas cabe salientar que o que “aí está” não é apenas o ensino religioso inconstitucional. Obviamente, levar a cabo a lei significa não constranger criança ou adolescente algum a participar das aulas de ensino religioso, mas, uma vez que esse componente curricular receba regulamentação teórica, metodológica e epistemológica adequada com a finalidade de verdadeiramente alçá-lo à qualidade conhecimento, não haveria restrição para a frequência de todos e todas as aulas de ensino religioso, pois os currículos não violariam a liberdade de consciência e de crença de ninguém. O que ocorre é que essas leis parecem terem sido elaboradas para agradar católicos – historicamente, os principais interessados nessa matéria –, por isso, o ensino religioso reconhecido como disciplina em horários normais, mas de maneira facultativa, para que não se deixasse de atender laicistas do movimento da escola nova, da década de 1930. Naquele tempo não interessava ao Estado resolver o imbróglio. Interessava mais manter as duas pontas sob relativo controle.

Atualmente, cabe ao Estado defender as crianças e adolescentes que frequentam o ensino fundamental de qualquer “constrangimento, discriminação e opressão” e cabe-lhe também o cumprimento da redação dada ao artigo 33, lei n. 9475/97. Ignorar a garantia constitucional e a orientação da LDB é, em outras palavras, esquivar-se do que necessita ser executado. Não se trata de considerar ilegítimo o ensino religioso, mas de implementar Diretrizes Nacionais para o Ensino Religioso, programas de formação e capacitação para docentes em ensino religioso e subsídios e editais para estudiosos de religião elaborarem e proporem subsídios pedagógicos para a prática docente. Essas ações corresponderiam a encarar o problema de frente.

Outra forma de esquivar-se do real problema estaria no suposto de que seria um risco a proposta de um ensino religioso não confessional. Um suposto amparado apenas nas experiências desastrosas de ensino religioso proselitista, confessional, inter-confessional e ou ecumênico. Somente posso compreender tal argumento tendo em vista que é considerável a parcela de juristas, pedagogos e outros interessados no tema do ensino religioso que desconhecem a possibilidade de abordar a religião como objeto. O que se faz tanto nas Ciências Sociais, quanto nas Ciências da Religião. Os tais parecem desconhecer que a literatura produzida com base no estudo acadêmico e científico da(s) religião(ões) provém da História, da Sociologia, da Antropologia, da Filosofia, das Ciências da Religião e outras área do conhecimento – reconhecidas pela CAPES – ligadas ao campo das humanidades, voltadas para o exame e escrutínio desse tema que é, sem dúvida, parte integrante da história da formação do Estado brasileiro. 

Conhecer o campo religioso brasileiro, suas tensões, suas controvérsias, desafios, perspectivas e limites, especialmente, na atualidade, corresponderia a oportunidade de compreender qual o papel que as instituições religiosas exerceram e exercem na formação de nossa história e cultura. Em que medida, os discursos religiosos são produtores de sentido ao ponto de determinarem a conduta de muitos cidadãos e cidadãs brasileiras. Isso posto, caberia ao ensino religioso não o enaltecimento ou promulgação dos discursos religiosos, mas o esclarecimento do que querem, pretendem e propõem tais discursos para parcelas generosas da sociedade. Varrer essa discussão para debaixo do tapete equivaleria a ignorar que em nossa sociedade, a religião e a religiosidade transitam em todos os espaços – por meio de seus agentes sociais – sejam eles privados ou públicos. Legar apenas aos religiosos a responsabilidade de tematizar religião corresponde a legar-lhes o direito de reforçar endogenamente a exclusividade de suas crenças e, consequentemente, o estreitamento da visão sobre pluralidade, diversidade e respeito pela alteridade. O Estado não deve interferir nas decisões individuais e privadas sobre ter ou não religião, mas deve garantir o direito das pessoas de exercerem suas liberdades de escolha. Escolher na base da razão pressupõe conhecimento.

Nesse sentido, se o STF “acolher a proposta de definir conteúdo escolar” relativo ao ensino religioso, diferentemente do que assinalou Fischmann, não estará induzindo à confusão quanto ao caráter facultativo desse componente curricular tornando-o obrigatório. Tampouco renovará a inconstitucionalidade da prática docente relativa a ele. Primeiro, porque construir uma proposta curricular para o ensino religioso atenderá o que pede a lei. Segundo, porque estabelecerá diretrizes para o ensino religioso laico, para aqueles que optarem por essa disciplina. Terceiro, porque isso significará a regulação da prática docente, o respeito à diversidade religiosa e à liberdade de crença. Quarto, porque isso significará a garantia de um ensino sobre religiões que permita aos alunos e alunas oportunidade de aprendizado não-tutelado pelas instituições/lideranças religiosas, que lhes será útil na formação de uma consciência crítica e autônoma. Consciência essa desejável para religiosos e não-religiosos. Sob essa perspectiva fica claro que trata-se de um ensino para o esclarecimento e não para o obscurantismo.

Vale lembrar, ainda, que a “invasão” de noções derivadas de crenças privadas na esfera pública não é debutaria exclusivamente do ensino religioso. Assim como na atualidade os conceitos de secularização, secularismo, laicização e laicidade têm sido rediscutidos à luz de reflexões que visam desconstruir esses conceitos em face da precariedade de suas definições clássicas diante as transformações que incidem sobre as sociedades pós-modernas, também as noções de público e privado merecem atenção dos juristas, pedagogos e educadores. Trata-se de perceber que o ethos religioso não é tal qual uma vestimenta que se troca em conformidade com os ambientes que se frequenta. Junto de si, religiosos e religiosas carregam princípios e valores apreendidos na experiência religiosa. Compreendê-los significaria a possibilidade de construção de pontes para o entendimento que resultariam em menor risco de violência e intolerância religiosa. O exercício da liberdade seria garantido pelo esclarecimento a respeito do que são as religiões, o que pretendem, o que pregam, quais são seus deveres e, principalmente, quais são seus limites. A qualidade desse tipo de ensino religioso difere em muito do PL que visa o ensino do criacionismo na escola.

Sabe-se da celeuma em que hoje o sistema educacional se encontra quanto ao número de novos temas e disciplinas propostas para os currículos escolares. Quanto a isso, a quantidade de novos componentes curriculares que pretendem ser incluídos no sistema educacional sinaliza uma educação cada vez mais formal, prescritiva e conteudista. Em defesa do ensino religioso laico resta-nos admitir que o tema desse componente curricular, a religião, bem poderia ser tratado no âmbito da História, por exemplo. Todavia, a peculiaridade do conteúdo tão rico em expressão, a especificidade do tema que exige o viés compreensivo e a vocação crítica do tema, que contribuiria profundamente para a formação plena de alunos e alunas, parecem requerem mais do que o tratamento transversal. Uma educação verdadeiramente humanística deveria ter na mesma conta de relevância aquilo que é pertinente à matemática, à língua portuguesa e ao que é do ensino religioso. Exige-se que alunos e alunas passem pela escola e desenvolvam competências significativas para uma vida cidadã. Essas competências compreendem conteúdos tidos como indispensáveis à vida em sociedade. A pergunta com a qual gostaríamos de terminar esse texto é: não seria indispensável ao ser humano um tipo de conhecimento sobre religião que promovesse entre religiosos e não-religiosos, a capacidade de diálogo, de entendimento mútuo e de convivência social pacífica? Isso não seria aprendizagem significativa? Esse tipo de conhecimento não contribuiria para a preservação do status laico do Estado brasileiro?


[1] DINIZ, Débora; LIONÇO, Tatiana. Educação e Laicidade. In DINIZ, Débora (et. al). Laicidade e ensino religioso no Brasil. Brasília: UNESCO/Letras Livres/UnB, 2010, p.14-15.

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