Não reconhecer, não tolerar, repudiar... E o que vem depois? A caça às bruxas?



Não é usual iniciarmos textos com negações e perguntas. Mas tanto as negações do título, quanto as perguntas do subtítulo têm razão de ser nessa generalizada falta de razão que estamos observando. Em tempos de ânimos acirrados, de mídias seletivas expressando rasamente questões muito complexas e de pessoas enlevadas por discussões muito pouco argumentativas e muito mais autoritativas, eu realmente ainda penso que o critério da dúvida é o meio mais construtivo para nos posicionarmos frente ao que estranhamos, desconhecemos e tendemos a rechaçar.


Eu sei que nem todas as pessoas pensam assim. Se fosse o contrário, ao invés de uma “Moção de repúdio” à campanha da UFJF pelo “xixi livre” nos banheiros da universidade (independente das distinções determinadas pelo sexo masculino ou feminino e destinada principalmente aos Trans, mas não somente), talvez, testemunhássemos uma sugestão de debate público, para que a campanha fosse melhor explicada e consequentemente compreendida. Talvez, pudéssemos participar de uma discussão sadia e construtiva, que colocasse frente a frente gente Trans e gente que se considera ofendida pela campanha.


O que eu penso quando testemunho uma “Moção de repúdio” como essa, movida por políticos que parecem representar apenas os valores de Uma moral entre tantas outras possíveis, sem que os tais políticos conheçam o conteúdo da campanha, o lugar dela dentro do conjunto de ações pela afirmação positiva de populações marginalizadas (como gays, lésbicas, trans, população negra, portadores de necessidades especiais, indígenas etc) e o que tais ações representam para a construção de uma sociedade igualitária e de direitos para todos e todas, é que tais políticos personificam e representam algo maior do que eles: uma mentalidade carente das luzes do esclarecimento, fixada na pré-modernidade e crente (do tipo que acredita quase que irrefletidamente) de que tem ainda O paradigma central e total para nortear a vida de todos e todas. É como se voltassem no tempo e se fiassem acriticamente na ideia de que não há salvação fora da igreja. Consequentemente, homens seriam chefes, mulheres seriam subservientes e crianças seriam a prole. Portanto, homens e mulheres conforme a moral da igreja é que seriam salvos e se alguém se desviasse desse padrão, restaria somente o caos e a maldição que recairia sobre todos indistintamente, levando toda a sociedade à condição de falência! Neste mundo pré-moderno, da Tradição, do teocentrismo e da binariedade tudo permaneceria em perfeita ordem. Identidades desviadas, desviantes, trans, não classificáveis segundo a binariedade do esquema moral dessa igreja, se existissem, seriam tratadas com a exclusão... Como no tempo da caça às bruxas (que curiosamente já se sabe hoje que foi um erro vergonhoso...).


Não, não estou forçando. Historicamente, quando algo ou alguém contraria a moralidade cristã e ameaça o semblante de perfeição que ela proporciona a quem dela compartilha, primeiro,  o que se observa é a ação de não reconhecer isso que a contradiz, que não se classifica e que destoa do que se convencionou considerar “normal”. Não reconhecer é um ato político, um ato de menosprezo ao que o outro “é” (do Ser); portanto, não reconhecer significa desumanizar o outro e, com isso, colocar-se em posição de superioridade em relação a ele. Quem se entende superior, entende ter direito de controlar o outro, como se o outro fosse objeto. Daí que esse outro tem vontade, tem autonomia, tem direito de Ser o que “é”. Não tolerá-lo significa recusá-lo. Uma ação desumanizante que diz para aquele que é recusado, que a sua presença não é desejável porque não se conforma aquilo que convencionalmente se entende ser tolerável. Recusar, repudiar,... são palavras fortes que rasgam, que humilham, que invisibilizam pessoas e as levam ao sofrimento.


A campanha pelo “xixi liberado” representa uma tentativa séria de esforço pela construção de uma sociedade para todos e para todas. A universidade pública – portanto, para todos e todas – é apenas um microcosmo num universo de outras instituições pelas quais tantas e diferentes pessoas passam.  Ações afirmativas como essa são ações políticas que visam não afrontar a moral X ou Y. Não se trata de fazer por meio dessa abertura uma campanha subliminar e maligna para que todas as pessoas sejam Trans, sejam do candomblé ou se identifiquem como portadoras de alguma necessidade, a fim de ganharem privilégios, pura e simplesmente. Ações afirmativas como essa visam mandar a seguinte mensagem: espaços que eram privilégio apenas de alguns no passado, podem e devem ser hoje compartilhados igualmente por todos e todas, simplesmente porque o nosso tempo é outro. É o tempo em que diferentes cosmovisões, diferentes ideologias, diferentes religiões, diferentes crenças, diferentes posicionamentos de modo geral podem e devem coexistir. 


Não se trata de ofender a sua linda família meu querido, minha querida. Trata-se de algo bem mais importante: trata-se do reconhecimento e da afirmação da possibilidade de múltiplas identidades. Trata-se de um novo tempo em que historicamente estamos buscando conviver, respeitando as diferenças e atinando mais para aquilo que nos une, do que aquilo que nos separa. Em outras palavras, você quer um mundo lindo para seus filhos. Nós queremos um mundo lindo para todos e todas, sem distinções, sem excluídos, sem marginalizados. A bem da verdade (como dizem os mais velhos) é que queremos uma utopia, assim como você que quer o Reino de deus (a sua utopia). 


Só que, provavelmente, no seu Reino de deus, eu, meus amigos e amigas gays, talvez, alguns portadores de necessidades especiais, o povo de santo, ateus, agnósticos, poetas e loucos, entre outros, não tenham vez e não possam entrar. Ao passo que nesse reino divino que estamos pretendendo – a tal da sociedade igualitária – até você poderá entrar!

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