Interfaces entre Pentecostalismo e Religiosidades afro-brasileiras: corpo, transe e palavras mágicas
Primeiras considerações
Tem sido usual que em debates acadêmicos e ou midiáticos, mesas redondas e rodas de conversa, os termos-chaves “pentecostalismo/neopentecostalismo” e “evangélicos” colocadas em lados opostos. Em certa medida isso se explica considerando as ações agressivas que não mais se limitam ao simbólico, mas extrapolam rumo à agressão física, colocando no centro de uma arena de conflito os evangélicos versus o povo de santo. Embora essas ações de violência classificadas como ações de intolerância religiosa não devam ser admitidas sob hipótese alguma, minha fala pretende apontar a ilegitimidade desses atos demonstrando que a despeito do que afirmam alguns protagonistas de tais eventos, existem similaridades estruturantes entre esses esses dois modos de religião que, no limite, nos permitiriam afirmar mais continuidades entre esses grupos do que rupturas.
Neste ensaio, cujo o objetivo maior
é proporcionar ocasião para refletirmos sobre as questões que orbitam em torno
das necessidades que negros e negras vivenciam hoje (na área da saúde e da
educação, por exemplo), além da sua
contribuição histórica como legado e patrimônio cultural, das suas religiosidades e da afirmação de sua estética, proponho ultrapassar a costumeira oposição
entre os pentecostais/evangélicos e o povo dos terreiros. Como indica o
título, minha proposta é lançar luz sobre aspectos da religiosidade
pentecostalizada que se encontram com a religiosidade afro-brasileira.
Para tanto, pressuponho que tais possíveis interfaces se estabelecem tendo como lugar privilegiado, o corpo.
Para tanto, pressuponho que tais possíveis interfaces se estabelecem tendo como lugar privilegiado, o corpo.
Para tanto, quero inicialmente
lançar mão de um vídeo:
O vídeo é a gravação de um culto
ocorrido numa igreja pentecostal não identificada, mas que
considerei bastante ilustrativo para o início de minha fala. Nele fica claro
que a experiência religiosa passa pelo corpo. Um corpo entregue à ação de uma
entidade espiritual, que neste caso é denominada pelos pentecostais como o
Espírito Santo. Vale dizer que quando essa entidade toma o corpo do crente, o
indivíduo perde a consciência de si e passa a ser controlado pela entidade
espiritual. O crente é recipiente ou, como dizem eles mesmos, “vaso” para o
Espírito Santo encher. Novamente, importante destacar o uso das expressões
“preenchimento” e “ser tomado pelo Espírito”, que correspondem ao entendimento
de que quando um crente é verdadeiramente entregue a Deus, pode ser veículo da
ação de seu Espírito que manifesta-se nele através de dons como o de cura, o de
profecia, o falar em línguas estranhas (a língua dos anjos, glossolalia), ou por meio de
experiências que envolvem danças, pulos, quedas etc. Fato é que, o desejo de
grande parte dos religiosos adeptos de cultos pentecostalizados é ter “uma
experiência com o Espírito de Deus”, isto porque, em tese, isso testificaria
publicamente o grau elevado de sua pureza e ou consagração a Deus.
Assim, sugiro que a experiência
religiosa se constitui como uma perspectiva desejada, como meio do indivíduo habitar e
ser-no-mundo. Desta forma, a experiência se expressaria conforme duas
dimensões, uma social (da orientação do sujeito religioso no mundo) e outra
ontológica (da possibilidade de atribuição de sentido à existência). A
primeira, porque em função dessa busca pela experiência com Deus, o crente
orientaria sua vida social de modo a, no mundo, corresponder a figura exemplar
que obedece a lei divina, anda segundo seu entendimento do que é certo e
errado, prospera e pelo seu testemunho transmite a mensagem do evangelho. A
segunda, porque a vivência prática desse evangelho é o que concederia substância
ou propósito a sua vida, portanto, é o que lhe motivaria a intervir e estar, mesmo
que pontualmente, nesse mundo. Algo próximo do Max Weber chamou ética intramundana, mas nesse caso, sem que a ação do indivíduo no mundo seja esvaziada de uma explicação, no limite, mística.
Dito isso, a experiência
religiosa pode se compreender em termos de “revelação”, porque dela emana
potencial interpretativo que ilumina a vida do indivíduo e lhe concede um
enredo. Tal compreensão da experiência flexibiliza o destaque à subjetividade
em favor da noção de intertextualidade capaz de conjugar reminiscências e
estratos da trajetória biográfica do sujeito religioso, coordenadamente, no
interior de uma narrativa.
Voltamos à cena da mulher negra girando no centro da roda de louvor ao Espírito Santo: seus gestos, sua corporeidade e o movimento de sua dança, bem podem nos remeter ao momento da saída de Oxum, da leveza até seu ápice, com atenção para o movimento dos braços, um esticado e outro dobrado, apoiado na cintura da mulher que gira. Outra mão ora graciosamente destaca o rosto, ora parece mimetizar o gesto de vaidade da mulher que se olha no espelho.
Voltamos à cena da mulher negra girando no centro da roda de louvor ao Espírito Santo: seus gestos, sua corporeidade e o movimento de sua dança, bem podem nos remeter ao momento da saída de Oxum, da leveza até seu ápice, com atenção para o movimento dos braços, um esticado e outro dobrado, apoiado na cintura da mulher que gira. Outra mão ora graciosamente destaca o rosto, ora parece mimetizar o gesto de vaidade da mulher que se olha no espelho.
Entendo que a experiência
religiosa, tanto numa modalidade de religião quanto noutra, é ampliada pela
força da trama da vida do adepto que dinamicamente ressemantiza a sua própria trajetória
a cada momento de incorporação e ou possessão espiritual. Neste sentido, a
experiência religiosa é também revelação, porque tem significância social e
simbólica para aquele que a vivencia e nela tem fé. Corresponde ao que Simmel
chamou de “ponto fixo” em meio à circularidade da vida.
Pensar a experiência religiosa em
termos de sentido e de prática pode ser uma chave para compreender como a
religião se expressa e se dissemina na sociedade secularizada. Assumida como
uma prática, a experiência da religião confere aos sujeitos a dimensão
ontológica que suscita sentido, tanto quanto lhe fornece parâmetros para a
orientação no-mundo. A consequência imediata desse entendimento seria, ao meu
ver, a noção de que na vida secular ser-religioso é uma opção entre muitas, com
a qual as pessoas podem assentir ou não. Fora da esfera privada, mesmo que a
experiência religiosa não seja reconhecida, ela constituirá significado para os
indivíduos que habitarão as esferas sociais, conduzindo-os em suas ações,
gestos e decisões.
A pesquisa etnográfica nos impele
a buscar nova maneira de tematizar os processos de conversão e adesão dos
sujeitos religiosos aos grupos pentecostais. Desta maneira, o uso do termo
conversão, na atualidade, deve permitir uma flexibilização do significado
historicamente embasado na teologia cristã (marcado por certa dualidade
estruturante), que desloque a ênfase dada à oposição antigo-novo para uma noção
de mediação entre diferentes
referentes culturais, que compreenda a relação desses pares simbólicos mais em
termos de continuidade ou similaridade do que ruptura ou oposição. Como
resultado, há de pensar mais pela via da comunicação entre eles e,
consequentemente, um tipo de ampliação mútua da significância desses
referentes. Trata-se de perceber que a conversão/adesão a um
grupo pentecostalizado pode implicar uma continuidade entre modalidades
religiosas que o sujeito na vivência da religião operaria pela elaboração de
práticas e de rituais similares, cujos símbolos, gestos e performances são
ressignificados.
Outros
cruzamentos
Com essas observações,
entretanto, não ponho de lado o entendimento e a crítica sobre a negativização da religiosidade
afro-brasileira nos cultos pentecostais. Entendo que em igrejas como a
Universal há de fato a mobilização de partes específicas da liturgia para a
divulgação da negativização de entidades espirituais do Candomblé e da Umbanda,
como o Exu. Nela esse Orixá é classificado como demônio e, consequentemente,
associado à noção de entidade do mal. Percebo aqui uma estratégia de
legitimação típica de pentecostais que não consiste apenas em apropriar-se das
formas religiosas do outros e ressignificá-las. É também isso, mas ao fim
pretende a divulgação de um tipo de religiosidade que, em tese, seria diferente
porque decorreria de Deus e não de Satanás, o maior inimigo do primeiro. Num
campo em disputa, esse argumento não é pouca coisa, principalmente, quando o
substrato cultural de grande parte da população brasileira remete a um
imaginário judaico-cristão, que concebe o mundo em termos de bem versus mal, luz versus treva, filhos de deus versus
filhos do diabo.
Significativo
nessa compreensão é que etnografias realizadas na IURD descrevem a presença do
“diabo no templo” em reuniões dedicadas ao exorcismo, ritual segundo o qual se
expulsa o diabo do corpo de fieis e não-fieis. Nessas situações é determinante
que ocorra a possessão espiritual, tanto
no terreiro quanto no templo[1].
A centralidade (ou dependência) que o demônio exerce no culto da IURD é
notória: ele ocupa a cena central.
Incorporada numa
pessoa, a entidade faz-se fisicamente presente, fazendo bem ou provocando mal. Mas,
vale lembrar que, se para cristãos bem e mal equivalem a condições distintas,
assim como sagrado e profano, para os adeptos de religiosidades
afro-brasileiras, Orixás podem ser simultaneamente bons e maus.
Daí, meu último
ponto:
Geografia
mítica: batalha espiritual e exorcismo
Em igrejas
pentecostalizadas como a Universal, a ressignificação do exorcismo faz
referência à personificação de exus, pombagiras e outras entidades (orixás e
guias) associadas ao diabo. A expulsão dos tais desloca a lógica simbólica do
feitiço do domínio humano para a “batalha escatológica”, que atualiza a luta
cósmica entre bem e mal no plano imanente. Assim como nos antigos mitos de
combate, o conflito entre as entidades espirituais têm implicações no mundo
social. A prática do exorcismo performatiza essa guerra e intenta libertar do
domínio “das trevas” os filhos “da luz”. Sob o domínio dessas entidades o
sujeito estaria irrefutavelmente separado de seu deus. Exibida publicamente,
essa prática se torna um rito religioso que supõe uma linguagem bélica de
conflito e de embate cuja finalidade é a “libertação” do fiel, cativo pelo
diabo. Portanto, a prática da entrevista comumente realizada em cultos
iurdianos, que consiste em identificar o demônio no corpo da pessoa possuída,
saber seus objetivos para com aquela pessoa e tomar ciência do que esse demônio
já provocou, além de ter um caráter instrutivo — pois indica aos presentes na
plateia a extensão do poder do inimigo e quais as suas estratégias de
destruição dos filhos de deus — objetiva humilhá-lo publicamente, assim o
envergonhando e exaltando o nome daquela divindade que seria maior e mais
poderosa: o deus cristão.
Acerca do tema
da batalha espiritual, Silva explicita a estruturação do ritual segundo a “1)
identificação das divindades do panteão afro com o demônio; 2) libertação pelo
poder (maior) do sangue vivo de Jesus (em oposição ao sangue ‘seco’ ou ‘fétido’
da iniciação ou oferendas) e, em consequência da libertação; 3) a conversão”[2].
Embora essa
linguagem remonte a um quadro de referências judaico-cristão, portanto, tenha
como recurso a apropriação e a negativização do universo simbólico do outro,
i.e., das entidades afro-brasileiras e espíritas, ela é feita segundo termos
internos das religiões sob ataque: transe e incorporação (possessão). O eixo de
compreensão desse fenômeno é deslocado somente mediante a distinção teológica
dos religiosos: enquanto para adeptos das religiões afro incorporar um orixá é
desejável (principalmente durante o início da vida religiosa e sob cuidados e
prescrições específicas da tradição), para evangélicos a incorporação
(preenchimento) deve obrigatoriamente ser realizada apenas pelo Espírito de
Deus, o que justifica a busca pelo “descarrego” e, na via contrária, o desejo
pelo “encher-se” ou ser “tomado” pelo Espírito Santo[3].
Silva propõe:
(...) o diabo (exu) quando nele se
manifesta fala a língua dos homens e de sua cultura (compreensível), enquanto a
pessoa está inconsciente, narrando suas façanhas malévolas. Moralmente, esse
“Eu” é visto, portanto, como essencialmente bom e certo e, a princípio, não
poderia ser responsabilizado pelos atos maus e errados cometidos sob a
influência dessa outra “persona” que o invade. Da mesma forma, esse “Eu”, ao
ser visitado pelo Espírito Santo e falar a língua dos anjos (incompreensível
aos homens), não perde sua consciência, ou, se quisermos, tal como a trindade
divina torna-se “várias pessoas em uma”.[4]
Portanto, Silva
entende “por adição” o fenômeno segundo o qual, ao descer num de seus filhos, o
orixá acresce à pessoa individualmente, ao passo que para um (neo)pentecostal
essa entidade deve ser subtraída para que nele tenha lugar a experiência
religiosa com o Espírito Santo. Nesse sentido, mas diferente de Silva, podemos
entender que também aqui a noção de pessoa se constrói pela adição, visto que o
Espírito Santo, ao ser experimentado pelo crente, deixar-lhe-ia marcas que a
narrativa do testemunho tenta perenizar ao ressaltar o conteúdo da revelação
que o Espírito deixa a quem tomou.
Outro ponto da
apresentação do antropólogo que podemos discutir é que, a meu ver, embora os
(neo)pentecostais de fato entendam que na experiência de possessão de um exu a
pessoa inconsciente esteja à mercê da entidade que consideram maligna — e isso
ficaria expresso no ato da entrevista feita durante o exorcismo, quando o
demônio (exu) é entrevistado e não a pessoa incorporada —, a inconsciência
também seria traço da possessão ou preenchimento pelo Espírito Santo, visto que
no ato do falar em língua ou do transe no Espírito o fiel perde a consciência
dos seus atos (a ponto de cair, pular, gesticular, gritar) e igualmente ficaria
à mercê dessa entidade[5].
Dito isso, vale lembrar que os sons que profere e a experiência do falar em
línguas, embora ininteligíveis aos outros, deixa impressões no crente que
permanecerão nele na forma de disposições norteadoras, características da
relação que o religioso passa a ter com sua experiência, desde então fundadora
de sentidos.
Assim, encaminho
essa apresentação para o fim, propondo que corpo e transe, em ambas as
religiosidades representam lugares privilegiados para que tais religiosidades
se manifestem. As similaridades estruturantes que se pode observar entre
evangélicos-pentecostais e o povo dos terreiros na execução de seus rituais,
parece-me, podem nos servir como pistas para o estudo e a compreensão de ambas
as religiosidades mais em termos de continuidade, do que ruptura. Não se
descarta aqui, que a linguagem bélica, o estímulo à negação do outro e o
desrespeito as religiosidades afro-brasileiras é algo a se repudiar e
problematizar. O que parece-me digno de apontar nesta ocasião é que tais
religiosidades, sempre em aparente tensão, disputam no campo religioso a
legitimidade e reconhecimento público da
sociedade, mas, por outro lado, talvez, possam ser entendidas como grupos que
se refletem como num espelho, com pequenas distorções. Neste sentido, são
grupos que se atraem e se repelem porque estruturalmente navegam pelo mesmo mar
em ondas de experiências de êxtase, transe, possessão e construção de identidades.
Por fim, vale
dizer ainda que tanto numa como outra, as identidades negras são valorizadas, pois
como filhos e filhas de deus ou filhos e filhas de orixás, no pentecostalismo
como nas religiosidades afro-brasileiras, negros e negras existem e se fazem reconhecer.
Nessas religiões, eles/elas deixam de ser excluídos e passam a ser profetas, filhos
Yansã e sujeitos que extrapolam a sombra e a marginalidade. Neste caso, o ódio
e a intolerância de crentes evangélicos não é direcionada a negritude do povo
de santo, mas a religião desse povo que representa no âmbito da cosmologia
cristã, o inimigo que se necessita combater.
[1]
ALMEIDA, Ronaldo. A Igreja Universal e
seus demônios. Um estudo etnográfico. São Paulo: Terceiro Nome, 2009. p.
69.
[2]
SILVA, Vagner Gonçalves da. Entre a Gira
da fé e Jesus de Nazaré: relações sócio-estruturais entre neopentecostais e
religiões afro-brasileiras. In: ______ (Org.). Intolerância religiosa: impactos do neopentecostalismo no campo
religioso afro-brasileiro. São Paulo: Edusp, 2007, p. 196.
[3] Ao
discorrer sobre transe e sacrifício (duas práticas religiosas presentes entre
modos pentecostais e religiosos afro), Silva fala a respeito de como tais
processos dizem respeito à elaboração das identidades sociorreligiosas, que ele
chama noção de pessoa, de quem vivencia tal experiência. Se entre adeptos das
religiões afro esse rito colabora para um tipo de construção da noção de pessoa
por “adição”, quando a entidade espiritual acresce à vida individual do
sujeito, diferentemente, entre pentecostais e neopentecostais o transe e o
preenchimento pelo Espírito Santo e o exorcismo — que Silva descreve pelo termo
sacrifício — visa à construção da noção de pessoa por “subtração”, que se dá
por meio da expulsão do espírito associado ao demônio. Nesse sentido, o “eu” se
torna divino à medida que se aproxima da purificação, libertando-se da entidade
maligna. Cf. SILVA, 2007b, p. 228.
[4]
SILVA, loc. cit.
[5]
Alguns evangélicos tomados pelo Espírito Santo relatam, após terem tido a experiência,
que não se lembram exatamente dos seus atos durante a ocasião de êxtase, mas
que lhes permanece uma sensação interior de alegria e de preenchimento
positivo.
Muito bom!
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