O assombro da conta



A intelectualidade pasmada se escandaliza com a participação religiosa na eleição, no suporte e no interesse da manutenção dessa política fascista, misógina, racista e elitista atual. Essa intelectualidade, que classifica as ações de religiosos como retrógradas em vista do avanço do tempo em que vivemos. Ela confunde essa presença muito divulgada e massificada nas mídias sociais com unanimidade e, como sempre, promove o entendimento falso de que todos os discursos religiosos ameaçam as liberdades individuais. 

Cansa-me que, atônitos, os intelectuais procurem pelo “viés”, que queiram “colocar a questão”, interpretar os “dados” e busquem o que dizem os “clássicos”. Não haveria escândalo se a academia reconhecesse que no Brasil, as modalidades de crença sempre estiveram presentes na esfera pública, aspirando poder, pelejando por ele e construindo alianças que os subsidiassem nessa empreitada. Não haveria essa pasmaceira toda, se com o reconhecimento da religião como dimensão da vida sócio-política-cultural-econômica de uma parcela significativa da população brasileira houvesse abertura para o exercício de compreender como esses agentes religiosos souberam, desde a separação Estado/Igreja, que a participação no jogo político é livre a todo e a toda cidadã que assim desejarem. Ela é legítima. 

Não haveria tanto susto se tivéssemos admitido, desde o início, que o nosso pressuposto de uma esfera pública política burguesa foi idealmente pensado para participações consideradas racionais, segundo uma presunçosa lógica moderna, positiva e cientificista da Modernidade. Contudo, a estrutura de nossa esfera pública política burguesa, por princípio, abre-se à participação de diferentes agentes sociais, com suas lógicas e demandas; com suas idiossincrasias e pautas específicas. E, nesse ponto, aqueles agentes religiosos – com suas lógicas pré-modernas e tradicionais – souberam muito bem como articularem-se, a fim de jogarem o jogo. E esse jogo é legítimo. Ganha quem souber jogá-lo. Não fomos educados e educadas para o ponto, o contraponto, a crítica e o embate. Estruturalmente, pensamos o jogo como se ponto e contraponto conduzissem a uma síntese pacífica. Mas isso somente ocorreu e ocorre quando um ponto é colocado sem abertura para ser refutado. Nesse caso, com autoritarismo. 

Religiosos – cristãos(ãs), tradicionais, moralistas e conservadores, dentre os quais, um setor evangélico, alguns católicos e espíritas – tendem a não quererem ouvir contra-argumentos, assim como parte da intelectualidade progressista recusou-se a reconhecer o poder dos discursos religiosos. Crentes que são na racionalização dos indivíduos, no laicismo civilizatório e na secularização do mundo, menosprezaram a dinâmica de reconfiguração da religião frente à autonomização das esferas sociais. Agora ela(s), a(s) religião(ões), volta(m) ao centro do palco, assumem com protagonismo o teatro de horrores que assistimos sobressaltados: “Oh, como isso é possível?”. Isso é possível porque uma potência, uma linguagem, uma forma de interpretar o mundo, um sistema para classificá-lo, dominá-lo e governá-lo como é a religião (ou as religiões), não poderia ter sido tão arrogantemente desprezada pelos caros colegas. A conta sempre chega! 

E se me perguntarem como o Brasil elegeu o que elegeu, responderei que foi do mesmo jeito como nos EUA elegeram aquela outra excrescência, igualmente, rude e tosca: desprezando a religião como força, poder e frutífera aliança. 


Princeton, 25/09/2019

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