Difícil agradar as pessoas. Difícil, sobretudo, porque as
pessoas tendem mais e mais a procurar pela minúscula mancha no canto esquerdo
lateral inferior, ao invés de prezarem pelo grande lençol branco e toda a sua leveza
no restante do tecido. Eis um dentre tantos dilemas.
De um lado, levantam-se vozes dispostas a colocar em dúvida a
validade do investimento na elaboração sofisticada de uma abordagem fenomenológica-compreensiva
da religião, com base na aplicação de princípios teóricos e metodológicos da Ciência
da Religião, ao contexto específico da Educação e – ainda mais específico – do Ensino
Religioso. Coloca-se em xeque (1) que isso seja possível, bem como (2) que isso
seja relevante. As vozes que engrossam esse coro, estranhamente, sucedem tanto
das distintas personalidades acadêmicas, muitas delas conhecidas pelo seu
distanciamento da realidade social (o que certamente não seria demérito),
quanto das pessoas que lidam com a educação na condição de profissionais “no chão
da escola”. E, neste ponto, essas duas qualidades de interlocutores (?) se
alinham: afinal, por que dar sofisticamento teórico a uma prática que, para acadêmicos,
não importa tanto e, para operários e operárias da educação, é tão alucinadamente
abstrata?
O absurdo desse alinhamento é que de ambos os lados, curiosamente, parece-se
ignorar o fato de que todo conhecimento acumulado ao longo da história do
pensamento humano é legado da reflexão. Consequentemente, não existiria ciência
– ilustrada, erudita e abstrata – senão houvesse quem nessa história tivesse
dado tempo para pensar, falar sobre o que se pensa e, posteriormente, ouvir o
que foi falado e repensar o pensado. É curioso também que a classe docente, especialmente,
aquela em exercício nas escolas da vida, esqueça-se do fato de que para ocupar
os espaços que estão hoje ocupando necessitaram em algum momento de suas
trajetórias terem, simplesmente, aprendido diferentes teorias. Daí que me
parece absurda a ideia de que teoria e prática são campos distintos, só porque não
haveria nenhuma prática sem a iluminação do conhecimento; tanto quanto, não
haveria o desenvolvimento progressivo do conhecimento se práticas criativas,
subversivas e arejadas não fossem cotidianamente vividas, testadas e, desde
então, avaliadas e re-feitas em ambientes de ensino.
E então chego ao meu segundo ponto: o generalismo. Se o
preciosismo acadêmico levanta suspeitas por causa de certo semblante arrogante
e elitista, porque descolado da realidade, o generalismo também parece-me
preocupante.
Divaguemos um pouco. Existem muitos críticos da chamada fragmentação
do conhecimento. Afirma-se, por exemplo, que a medicina ortopédica especializada
em traumatologia, que dedica-se ao pé, não poderia esquecer-se do quadril tampouco
do joelho, se considerarmos que cada uma dessas partes compõe um mesmo corpo.
Mas aí, absurdamente, existiriam os especialistas que tratam do pé, do joelho ou
do quadril, sem darem atenção a essas outras partes... Mas o que isso tem a ver
conosco na Ciência da Religião e mais especificamente ainda com a Ciência da
Religião aplicada?
Do modo como vejo, ao mesmo tempo em que tanta especialização
pode nos circunscrever num mundinho teórico de abstrações não verificáveis na
prática, por outro, elas são requeridas se quisermos fazer do Ensino Religioso
um componente curricular reconhecido e não apenas “engolido”. Para além disso,
urge que alguma especialização seja realizada com disciplina, rigor e sofisticação
teórica. E daí algo da crítica ao generalismo precisaria ser melhor compreendido
em nosso contexto.
A religião é um fenômeno fundamental para se compreender mais
acuradamente a sociedade, o indivíduo e a cultura. O fenômeno religioso é
amplo, ambíguo e complexo. Fazer Ciência da Religião exige que percebamos esse
fenômeno, tanto quanto possível, com um olhar mais amplo, reconhecendo a sua
totalidade. Mas, e ressalto o “mas”, esse olhar global, diametral, transversal
não nos autoriza a dizer tudo o que quisermos da religião ou de todos os
assuntos que, de alguma forma, envolvem religião sem algum nível de
especialização.
Se certos especialistas pecam por saber a história da privada
do ocidente anglo-saxão, no período da modernidade recente, generalistas pecam
por saber – ou pensar que sabem – sobre a privada, as formas da privada, o
encanamento, os tipos de ducha higiênica e tudo o que diz respeito a privada.
Para isso, basta ler aqui um ou dois comentários, um ou dois tratados “a
respeito de” e, pronto, já se podem tirar conclusões. E, assim, surgem generalistas,
que falam do pentecostalismo, da Bíblia, do Fundamentalismo, do catolicismo,
das religiões afro-brasileiras e das africanas, das questões de gênero e, da
história da privada! Tudo junto e misturado.
Qual é, então, o desafio aos novos e novas cientistas da religião brasileiros?
Nem tanto o céu, nem tanto o inferno.
O preciosismo é sacal, mas necessário para a construção da
boa ciência. Precisa-se urgente de quem leia e atualize os pais da Ciência da
Religião para os tempos contemporâneos.
Uma boa ciência de base (teoria hard) é fundamental para
qualquer docente, em qualquer disciplina. Não seria diferente para a Ciência da
Religião.
E, neste caso, especialistas (não arrogantes) e não comentaristas
de plantão é que serão peças fundamentais para se pensar, tanto currículos e documentos, quanto práticas docentes e projetos de formação para os novos quadros em
Pesquisa, Docência e Extensão, em Ciência da Religião.
Princeton
28 de Outubro de 2019
Que bom ler seu texto. Tenho discutido, não a respeito da Ciência da Religião, mas sobre identitarismo, como as novas gerações tem dia a dia inventado a roda se esquecendo de olhar os que primeiro abriram caminho. E lendo você dizer da necessidade de voltarmos aos pais da Ciência da Religião e fazer uma releitura deles. Fico pensando que esse processo de esquecimento ou de negação do passado tem sido generalizante. Voltando a Ciência da Religião aplicada, creio que urgente que discentes das universidades e das escolas passem a comungar uma troca de saberes no intuito de podermos não só preparar os jovens alunos, mas para uma constante construção de nossos saberes. Belo texto.
ResponderExcluir