Entenda qual a influência da Bíblia e quais são as partes
dela que instrumentalizam o discurso religioso conservador.
O retorno ao colonialismo
“Destruiu os lugares altos e quebrou as colunas sagradas,
derrubou o tronco sagrado e despedaçou, inclusive, a serpente de bronze feita
por Moisés, pois os filhos de Israel ainda queimavam-lhe incenso (chamava-se Noestã)”.
2 Reis 18:4
Pode parecer estranho aos olhos de alguns que a Bíblia seja
alçada como símbolo,
num momento de golpe como o que foi desferido contra o governo de Evo Morales, por
Carlos Mesa, ex-presidente, e Luis Fernando Camacho, líder dos protestos de
oposição na Bolívia.
Ao invadirem o Palácio do Governo, os oponentes ao governo de Morales dirigiram-se ao centro
do salão principal e ajoelhados diante a Bíblia sobre a bandeira boliviana
afirmaram seu compromisso com a fé cristã. A imagem divulgada em 10 de
novembro de 2019 foi chamada como o “primeiro golpe cristão militar do século XXI
na América-Latina” em muitas mídias sociais (https://twitter.com/rvianna/status/1193632584581947392?s=19). Pouco
tempo depois, no dia 12, a senadora Jeanine Áñez se auto-declarou presidenta da
Bolívia e, dirigindo-se ao Palácio do Governo, declarou “La Biblia vuelve a
Palacio” (https://cnnespanol.cnn.com/2019/11/12/las-ultimas-noticias-de-la-crisis-en-bolivia-y-el-asilo-a-evo-morales/).
Este quadro revela-se mais complexo se adicionarmos ainda
outras informações que dão conta do apoio de parte dos evangélicos brasileiros
ao golpe: “Em áudio filtrado pelo jornal boliviano El Periódico, um
interlocutor aliado de Camacho revela o apoio “das igrejas evangélicas e do
governo brasileiro” ao golpe, e fala de um suposto “homem de confiança de Jair
Bolsonaro, que assessora um candidato presidencial”. E, na segunda parte do
texto, o interlocutor declara: “Temos que começar a nos organizar para falar de
política nas igrejas, como já se faz há muito tempo no Brasil, que já tem
deputados, prefeitos e até governadores da igreja (evangélica)” (cf. https://revistaforum.com.br/politica/oposicao-pede-explicacoes-ao-itamaraty-sobre-participacao-do-brasil-no-golpe-contra-evo-morales-na-bolivia/.
Publicado em 10 de novembro de 2019).
Em resumo:
1) Um golpe contra o Estado de direito boliviano foi
desferido pela oposição, que ameaçava a integridade do presidente, seus
familiares, entes queridos e comunidades indígenas próximas, com violência
descomunal;
2) A oposição ostentou a Bíblia como seu símbolo de
legitimidade;
3) O golpe e as ações dessa oposição golpista foram
apoiadas por um setor dos evangélicos, aliados do atual governo brasileiro.
Qual a relação desse cenário com a citação da Bíblia em epígrafe?
Primeiramente, a citação bíblica refere-se a um momento histórico
em que judeus lutavam arduamente contra a influência de povos estrangeiros, a
cultura e a religião desses povos. O Deus de Israel, Yahweh, estava em disputa
com Baal e Asherah, respectivamente, Deus e Deusa canaanitas, venerados por parte
do povo judeu. Os “lugares altos” eram altares, as “colunas sagradas” e o “tronco
sagrado” eram Asherahs, e a “serpente de bronze”, todos, eram símbolos da religiosidade canaanita
compartilhada por alguns dos filhos de Deus, antes libertos pelas mãos de
Moisés. Os reis instituídos por Deus, então, de tempos em tempos eram chamados
para restituir a adoração exclusiva à Yahweh. Mesmo que esses reis, a exemplo
de Davi, não tivessem condutas tão aprováveis (foi Davi que desejou a mulher de
um de seus soldados e o enviou ao campo de batalha, a fim de que fosse morto em
combate).
Em segundo lugar, sempre que Israel desviava-se do reto caminho
entendido como da pureza, da separação e da obediência à Lei, produzida no
Templo pelos sacerdotes, os seus reis estavam autorizados, assim como os seus juízes e os
seus profetas a guiarem o povo no caminho da retomada da aliança com Yahweh. Para
isso, estavam autorizadas as invasões, as mortes dos povos estrangeiros (homens,
mulheres e crianças), os espólios de guerra e, a depredação dos seus espaços
sagrados e dos seus altares. Tudo feito para garantir a fidelidade à aliança de
Israel com Yahweh.
E aqui está a relação entre uma história tão antiga com as
recentes cenas da política latino-americana e brasileira: os povos indígenas,
os povos quilombolas, os nativos dessas terras, bem como as minorias sociais
que constituem as sociedades contemporâneas no hemisfério Sul (mulheres, juventude
e comunidade LGBTQI+), hoje, representam o povo colonizado que abandonou e se desviou da aliança estabelecida
aqui pelos colonizadores cristãos. Em outras palavras, essa gente da senzala ousou rebelar-se contra a casa-grande!
Assim, contra a desobediência aos valores morais e à
ética cristã justifica-se a punição com a invasão dos Palácios e a destruição de seus símbolos. Mesmo que isso signifique colocar de lado a salvação anunciada por Jesus para todos e todas. Se forem necessárias as mortes desses nativos-pagãos, que assim seja. Tudo em nome do
Deus da Bíblia, mas aquele do Antigo Testamento, e em nome da retomada do poder religioso, protagonizado por católicos e evangélicos de viés conservador.
Contudo, bom que se atente para isso: não são todas as religiões
cristãs que se articulam, pelo bloqueio das políticas sociais dos governos mais
populares e progressistas na América-Latina. Não são Instituições religiosas
que se possam nomear (com exceção de uma, no caso brasileiro, que detém concessão
do Estado para operar uma rede de comunicação), mas são pessoas ligadas às
religiões de corte cristão – entre católicos e evangélicos – que tem dado suporte a esses governos fascistas da extrema direita, infiltrando-se nas Instituições da União e nos espaços de poder, isto é, na estrutura do Estado.
Por fim, um detalhe não menos importante. Assim como no tempo
do Antigo Testamento, o zelo pelo cumprimento da Lei era responsabilidade da elite sacerdotal, que não
se misturava com o povo e que guiava-se pelo ideal de pureza, também hoje
aqueles que ostentam a Bíblia contra os governos populares, os povos indígenas,
os negros e as negras da periferia, os trabalhadores e as trabalhadoras, a
juventude e a comunidade LGBTQI+ são elite. Uma elite que preza pela hierarquia
social e que não admite a possibilidade de mobilidade dentro dessa hierarquia, que
é racista, misógina, homofóbica e, portanto, conservadora de uma ordem que pensávamos ter sido superada.
Para essa elite as palavras “destruir”, “quebrar” e “derrubar”
são verbos de ação, referendados na Bíblia e, portanto, palavras de ordem daqueles
que estão à direita do Deus-Pai. Por isso, o desejo de aniquilação dos traidores da pátria que
ousaram a descolonização do povo, da cultura, da religião.
E, então, isso nos leva a outra pergunta: será que algum dia deixamos de ser colonizados?
Elisa Rodrigues
Princeton, 13 de novembro de 2019
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