Jesus de Nazaré versus o Cristo hétero, branco e de olhos azuis


Fonte/Imagem: Jornal Estadão

O Especial de Natal do Porta dos Fundos, A primeira tentação de Cristo, tem chamado muita atenção do público em geral. Mas essa não é a sátira ao feriado cristão mais interessante que o Porta dos Fundos realizou. Não, ao meu ver. O grupo tem feito anualmente suas sátiras da narrativa do 25 de dezembro. Todas com requintados roteiros que, certamente, usaram de pesquisa histórica para re-criar o nascimento e a vida do Nazareno. E, certamente, a menção a dados culturais e geográficos daquele período é que surpreende muitos desses cristãos tão desconfortáveis com o especial de Natal.

Penso que antes de sairmos disparando certa indignação pela “brincadeira” com a fé dos outros, seria mais proveitoso lembrar primeiro que a ficção não é normatizada pela razão, tampouco pela fé. É simplesmente ficção, que não compromete nem o dado histórico, nem o que acreditam as pessoas. Se compromete o dado histórico é porque não foi comprovado por evidências. E, se compromete a fé de alguém é porque essa fé não está lá tão fortalecida.


Em segundo lugar, o gênero sátira é um recurso tanto da literatura quanto do cinema. Recurso artístico para se abordar histórias, fatos e acontecimentos de forma livre e irônica, falando e discutindo instituições, ideias, vícios e costumes. O que o Porta dos Fundos fez é usar desse recurso para abordar a narrativa da instituição religiosa sobre o evento Jesus de Nazaré, depois chamado Jesus Cristo. Se Jesus foi gay ou não, pouco importa. Importa que a Igreja fez dele uma peça fundamental, sobre a qual se erigiu a tradição dessa instituição. Daí, o que de fato deixa as pessoas tão incomodadas é a liberdade dos roteiristas, atores e criadores em abordar ironicamente esse poder institucionalizado, que afirma que Jesus era branco, loiro de olhos azuis, filho de Deus e concebido não por sexo, mas de uma relação não sensual entre Deus e uma mulher virgem, nunca antes tocada e absolutamente submissa a esse Deus. 

Na real? O poder do patriarcado, da Instituição machista e terrivelmente autocrática é que se sente aviltado com o Porta dos Fundos. Sinceramente? Essa é a função da arte, da sátira e da ironia: desestabilizar o poder autocrático, arbitrário e geracional, que segrega, que se impõe pela força e que é mantido sempre entre esses crápulas da Eclésia, das oligarquias e das elites brancas e masculinas.


Não assino abaixo-assinado contra o Porta dos Fundos, porque eles cumprem mais do que um papel social: eles salvaguardam nosso direito de livre expressão, de criatividade, de subversão da ordem, sempre que essa ordem sufoca e invisibiliza populações inteiras.

O Jesus que deve ser celebrado nessa data fictícia de 25 de dezembro, essa sim uma grande mentira, é o Jesus que andava com as putas, que perdoava ladrões, que se insurgia contra os sacerdotes no Templo e não admitia o comércio da fé. Esse Jesus andava com pobres, porque ele mesmo era pobre. Ele era preto porque andava no sol, porque sua etnia não era branca. Ele era hebreu de pele rude e escura. Ele era marginal, porque tocava em leprosos e impuros. Ele era homem que andava com mulheres ao seu lado, sem desprezar-lhes a importância. 

Esse Jesus era o Nazareno. Esse Cristo que os cristãos temem ter sido aviltado, esse foi a grande e mais duradoura invenção que a humanidade já elaborou.

Por isso, satirizá-lo é tão importante. Simplesmente, porque ele nunca existiu. Existe sim uma imagem criada e fomentada por instituições e pessoas religiosas, perfidamente manipuladoras e traidoras do Nazareno e de seu movimento.

Por fim, uma sugestão cultural: leiam Religião e Cinema, de Frederico Pieper (https://www.academia.edu/37422804/Religiao_e_Cinema_Frederico_Pieper)Neste livro, dentre outras películas que dão suas versões artísticas sobre o evento Jesus Cristo, está um capítulo dedicado ao delicioso A vida de Brian, do grupo Monty Python  (https://www.youtube.com/watch?v=GMmfKGZsfBY). Para quem entende de cristianismo primitivo, gosta de história e ou se interessa pela sociologia do movimento cristão, o capítulo é todo dedicado a esse filme sátiro e exemplar do gênero. Vale ler o livro, vale muito ver o filme!


Feliz Natal!

Elisa Rodrigues
Princeton, 15 de dezembro de 2019.

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