A perseguição dos justos. Que justos são esses, “cara-pálida”?


Acesso 27/02/2020.

Delicioso e repugnante ver, ao mesmo tempo, como o discurso religioso aparece protagonizando nossa cena histórica, política e cultural. Delicioso porque sou estudiosa da religião há pouco mais de vinte anos. Esse é meu campo, esse é meu espaço. Repugnante porque o uso que certas classes de políticos e lideranças religiosas fazem das narrativas e dos símbolos religiosos ameaça a liberdade da nossa sociedade, tanto daqueles que tem fé como daqueles que não tem.

Nesses dias alvoroçados pelo Carnaval “Fora Bolsonaro”, ironicamente, observamos que algo de incomodo, de indignação, de crítica e de insatisfação se move nas mais diversas classes sociais. Não apenas as pessoas pobres oprimidas pelas polícias truculentas nas favelas, não somente as mulheres vítimas de violência ou as pessoas da comunidade LGBTI+, igualmente, vítimas de violência, discriminação e preconceito. Também pessoas ricas, gente da elite empresarial, economistas conservadores e a própria imprensa corporativista, que apoiou o golpe e a consequente eleição do atual (des)governante, agora, parecem finalmente terem sido iluminados.

A iluminação? Ora, já falávamos há tempos: a eleição desse homem, por quem tenho asco, significa a eleição de uma pessoa mal-intencionada, de má-índole, de mau-caráter. Alguém que assumiu publicamente posições contrárias aos direitos das mulheres, que as desrespeita sistematicamente, que ofende pessoas gays, que expressa seu racismo com piadas torpes e idolatra torturadores, além de lamber as botas do presidente norte-americano (outro triste exemplar do gênero masculino), não pode ser alguém digno de ocupar a presidência da República. Não é digno e não tem capacidade de exercer esse cargo com a respeitabilidade e tato, que exige a função.

A insensatez dele, sim, é imensa. Mas há algo que não se pode negar e sobre o quê me ocuparei nas próximas linhas. Ao vazar vídeos com conteúdo que incita manifestações contrárias ao Congresso Nacional, o (des)governante toma como justificativa dois argumentos. O primeiro: “não estão me deixando governar”. E, ele segue, “não temos desenvolvimento econômico porque o Congresso barra minha agenda”. “Não temos apoio, porque a mídia está contra mim e me ataca”. Não conseguimos avançar porque a esquerda corrompeu o sistema. O segundo, sofro perseguição, como sofreram os profetas de Deus (fazendo referência ao profeta do Antigo Testamento, Jeremias).

Sabe o que isso cheira? Isso cheira à síndrome de vitimismo. E, sabe por que isso nos interessa? Porque a chave persecutória é uma estratégia do discurso religioso neopentecostal, para avançar sobre os que julgam ser seus inimigos na guerra do bem contra o mal. Eis aí o substrato religioso dando base para as ações insensatas do atual (des)governante do Brasil. Ele se faz de vítima. Ele afirma ser perseguido pelas forças do mal. Ele se compara ao próprio Cristo perseguido e morto injustamente. Mais do que isso: ele afirma já “quase ter dado a própria vida” pelo bem da nação. Um caldo de referências que mistura salvacionismo, messianismo e "O Armagedon".

Se engana quem pensa que isso comove apenas a sua base: de evangélicos conservadores. Se engana quem pensa que essa verborragia não atinge outros e outras que todos os dias se sentem aviltados pela injustiça social e econômica. Há pessoas não-evangélicas que também se sentem perseguidas, mal-tratadas, incompreendidas e violadas todos os dias. Para todas essas pessoas, a narrativa religiosa “cristã” afirma: os justos serão recompensados, o que causa alguma identificação. E, então, o discurso religioso os/as pega de jeito. Principalmente, quando acionado em tempos de crise. Tempos de crise constituem o ambiente perfeito para que salvadores apareçam.

Dito isso, caríssimas pessoas que se colocam ao lado da Democracia, do direito às liberdades individuais, de expressão, de livre pensamento, de crença etc. Sejam vocês da esquerda moderada, progressista ou sócio liberais, sejam vocês da direita esclarecida (a direita inteligente) ou aqueles/as “isentões”: uni-vos em nome da Democracia. Se posicionem com clareza contra o ataque às instituições. E, sobretudo, não desprezem a força que tem o discurso religioso para aqueles que por meio dela, a sagrada igreja, já se acostumaram a naturalizar a desigualdade social, cultural, sexual, étnica e outras. Sim, esses tipos continuarão a usar o discurso religioso conforme uma hermenêutica exclusivista, patriarcal e conservadora, para justificarem seus atos beligerantes e contrários aos ideais sociais e de liberdade.

Nunca uma representação do Cristo crucificado fez tanto sentido! Mas, talvez, também nunca tenha causado tanto desconcerto. A representação do Cristo jovem, negro, de cabelo descolorido, tatuado e furado a bala atualizou com excelência, o Cristo da periferia de Jerusalém, morto pelos sacerdotes e fariseus de seu tempo. Como nossa juventude nas periferias brasileiras, Jesus era de pele escura, desconhecia o pai, foi criado pela mãe e por um padrasto trabalhador. Esse Jesus das margens foi morto pelas elites do seu tempo. 

Morto porque tinha a liberdade no olhar.

Felicidade ver que essa versão do cristianismo desceu do morro. Como foi com as primeiras comunidades cristãs: a versão das margens, feita pela gente pobre e marginalizada daquela época. 

Contrariamente, essa religiosidade “bozonarista” é nada mais do que uma apropriação da ideia de perseguição espalhada pela Bíblia. A mesma apropriação que líderes pentecostais usam nas redes de TV, aos prantos, para estrategicamente convencer adeptos e simpatizantes, que são justos sendo injustiçados “pelo sistema”, “pela mídia”, “pelos políticos de oposição”.


Mas que justos são esses “cara-pálida”? Que desdenham da doméstica que sonha com a Disney, que insultam trabalhadores/as chamando-os/as de parasitas e que promovem o ataque à Democracia. São esses , de fato, justos?

#Resistimos

Elisa Rodrigues
Princeton
Fevereiro, 27 2020.


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