Campanha religiosa de apoio ao presidente |
Há tempos a desinformação tem sido perversamente usada
para a manipulação das pessoas. Pessoas desinformadas, com medo e vivendo situações
de fragilidade física, econômica e social são alvos privilegiados para quem
almeja o poder e o controle sobre as mentes e os corpos das pessoas, em tempos
de incerteza. Quando existem interesses econômicos engrossando esse caldo, o
caos torna-se ainda maior. E, nesses momentos de crise, qual discurso é
geralmente acionado para causar uma sensação de ordenamento e sentido?
O discurso religioso, assim como destaca o cartaz ao lado. Neste texto, abordarei duas formas por meio das quais esse
discurso tem sido acionado. A primeira, a simbólica. A segunda, a política.
Não é de hoje que a Ciência da Religião tem afirmado que aborda a religião na vida das pessoas segundo duas dimensões: uma que é da ordem
da subjetividade e outra de natureza objetiva, isto é, da materialidade sócio-histórica.
A implicação disso é quase óbvia: enquanto do ponto de vista subjetivo a
religião concede as pessoas significados para viverem suas vidas, do ponto de
vista objetivo, esses significados orientam essas pessoas em suas vidas
sociais. Sendo assim, a religião ou o discurso religioso modela a vida no seu
sentido mais material e histórico. Você pode entender isso como uma ideologia
que dá norte para a vida das pessoas ou como uma utopia, que as alimenta e lhes
encoraja. Mas, negar que as ideias religiosas tem desdobramentos no cotidiano
social, econômico e cultural da sociedade seria (aliás, tem sido) um grande
erro.
Num período de crise como o que estamos atravessando com a pandemia pelo COVID-19, o discurso religioso emerge como um farol, cuja finalidade é sinalizar o socorro desejado por tantas pessoas que se sentem à deriva. Quando esse discurso aciona imagens e símbolos de salvação marcados pelo cristianismo, os efeitos são ainda mais eficientes quando os grupos sociais que recebem a mensagem preservam marcas na sua formação, da influência católica e evangélica. Esse é o caso do Brasil e dos EUA, por exemplo. Dois países em que por mais secularizadas que sejam as suas sociedades, ainda se pode observar uma grande interferência das religiões cristãs, católicas e evangélicas.
Foto: Folha de São Paulo, 10/04/2020 |
Nessas
sociedades, termos como “apocalipse”, “final dos tempos”, “pragas”, “maldições”,
“impureza”, “punição” etc. são facilmente lembrados, quando no dia-a-dia as
pessoas experimentam situações de caos e desordem. Neste contexto, geralmente surgem
figuras proféticas anunciando “esperança”, “nova vida”, “restauração”, “bênçãos”,
necessidade de “purificação” e “perdão”, a fim de que a ordem seja
restabelecida. É dito também que a crise é resultado do desvio do caminho certo,
o qual teria sido abandonado.
Tendo sido desprezada “a tradição”, um mecanismo
que assegurava a estabilidade, a crise seria inevitável. Daí que o único meio para
obtenção da paz é atender ao chamado das figuras proféticas, que representam a
vontade do deus-poderoso que recuperará por meio de uma aliança, um novo estado
de coisas. Quem sabe uma nova sociedade, um novo mundo?
Você pode não aceitar essa linguagem. Pode até mesmo não compreendê-la. Entretanto, ela faz sentido e explica para muita gente, o “porque” de elas estarem sofrendo. Ao mesmo tempo, ela providencia respostas para as questões que nem o pensamento da direita racional (não me refiro à extrema-direita), tampouco da esquerda progressista conseguem responder. Então, chegamos a segunda forma por meio da qual o discurso religioso tem sido acionado: a política.
Você pode não aceitar essa linguagem. Pode até mesmo não compreendê-la. Entretanto, ela faz sentido e explica para muita gente, o “porque” de elas estarem sofrendo. Ao mesmo tempo, ela providencia respostas para as questões que nem o pensamento da direita racional (não me refiro à extrema-direita), tampouco da esquerda progressista conseguem responder. Então, chegamos a segunda forma por meio da qual o discurso religioso tem sido acionado: a política.
Se a informação das autoridades de saúde e sanitaristas não
chega para a população, se o que é dito é confuso para as pessoas que estão lá
na ponta sendo assaltadas pelo medo e, finalmente, se o governo federal,
desorientado e ineficiente, contradiz o que a União dos Estados está propondo
como orientação para a população em cada região, o discurso religioso é
acionado estrategicamente pelas lideranças religiosas, a fim de tomarem a
direção da embarcação à deriva. Isto é, tomarem o controle da situação.
Pastores, pastoras, profetas, missionários e cantores(as)
evangélicos(as), mas também católicos(as) “renovadamente conservadores” desfilam
nos vários canais e mídias sociais, seus discursos de salvação, de milagres e
de curas. Para essas lideranças, suas igrejas e templos são baluartes da
esperança. Lugares absolutamente seguros, onde o apocalipse não chegará. Com
jejuns e orações prometem cura e desprezam outros discursos, como o da ciência,
especialmente, da medicina, como orientações objetivas para se seguir. E, por
mais estranha que possa soar essa linguagem para a intelectualidade acadêmica,
paras militâncias de esquerda e coletivos sociais, essa linguagem simbólica que
reveste os discursos religiosos, especialmente, os conservadores e
fundamentalistas, acaba por fazer mais sentido do que os nobres, sofisticados e
analíticos discursos dos especialistas free-style de plantão.
E, então, o que eu espero não ser o gran finale: a suspeita apropriação política desse discurso religioso. Uma apropriação
suspeita, porque parece ser feita estrategicamente como meio para constituir ou reconstituir uma base de apoio para esse governo desgovernado. Uma base
que garanta alguma governabilidade ao responsável pela pior forma de se conduzir
o país durante uma crise de saúde pública, a mais grave desde o último
século.
Explico: a apropriação política do discurso religioso é não
mais que um recurso que causa identificação entre a liderança e o povo
religioso. Seja porque o atual presidente coloca-se na posição de alguém
perseguido, seja porque ele se auto intitula bastião para a sociedade. Aquele
que a guiará através da desordem rumo ao novo mundo. Apoiado pelas lideranças do
campo religioso evangélico, eles afirmam que a crise foi instaurada não pelo alastramento
de uma epidemia que precisa ser combatida com medidas rígidas de contenção, mas
por causa da corrupção, da demora nas reformas (trabalhistas, da previdência), por
causa do PT, porque a esquerda comunista atrasaria a economia com seus
programas assistencialistas, por causa da vagabundagem dos povos nativos nas
reservas e nos quilombos e por causa de outras dessas lorotas disparadas como fake-news.
Tudo isso, mais a imoralidade provocada pela desestruturação da família brasileira, seria o conjunto dos sinais que apontam para o fim. Praga, maldição, imoralidade, desvio.
Além do uso dessa linguagem religiosa e apocalíptica, feito
por religiosos e políticos a fim de obterem seus objetivos – uns manterem-se no
governo, outros manterem seus apriscos lucrativos de fieis – o que me espanta é
o combate travado por alguns intelectuais, contra esses fieis convencidos pelos modernos profetas do caos. Sobretudo, me espanta é que assim a desinformação continuará sendo nossa pior inimiga. Se a
falta de esclarecimento fragiliza as pessoas ao ponto de serem convencidas por
qualquer discurso que tenha alguma força, imagina se não seriam convencidas
pela força de um discurso sem argumento, mas profundamente imagético?
Arquivo pessoal |
O uso da desinformação tem sido o recurso mais eficaz para
causar medo, mudar o foco das atenções e esconder a incompetência política
desse governo e todo seu ministério. Enquanto Jair “Messias” Bozonaro faz jejum
e campanha de oração pelo país, espalha o vírus com sua comitiva contagiante e,
junto do seu gabinete do ódio contribui para acelerar a curva de morte pelo
COVID-19, Silas Malafaia, Valdemiro Santiago e outras figuras evangélicas
pentecostais de grande adesão junto ao povo seguem convocando multidões para
suas reuniões nas igrejas em todo país.
Irresponsabilidade apoiada pelo
governo, porque nessas igrejas abarrotadas de gente desinformada este (des)governo é ovacionado, pois qualquer direção é bem-vinda. Moral da história: não deveríamos
perder tempo combatendo a linguagem religiosa, porque ela orienta pessoas. Mas deveríamos investir tempo e energia no combate ao medo e à desinformação. Principalmente, com conhecimento de qualidade e com outras alternativas e possibilidades de
orientação para a vida das pessoas.
Quando conseguirmos nos comunicar com o povo a partir de uma linguagem que fale com ele existencial e materialmente, que faça sentido e tenha credibilidade, então, lideranças religiosas charlatãs, bem como políticos interesseiros não terão mais ocasião. A sociedade precisa de orientação e de condições de vida: nem somente uma, tampouco somente a outra.
Quando conseguirmos nos comunicar com o povo a partir de uma linguagem que fale com ele existencial e materialmente, que faça sentido e tenha credibilidade, então, lideranças religiosas charlatãs, bem como políticos interesseiros não terão mais ocasião. A sociedade precisa de orientação e de condições de vida: nem somente uma, tampouco somente a outra.
Elisa Rodrigues
Juiz de Fora, 16 de abril de 2020.
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