Utopia e paixão! Quando a política é cotidiana e quando o cotidiano é político


 Diretas Já… Não, calma! - NEW ORDER - Medium
Em 1998 li o livro Utopia e Paixão, de Roberto Freire e Fausto Brito. Freire tornou-se minha paixão. Ele, um anti-psicoterapeuta, anarquista, escritor, criador da Soma terapia, entre outras coisas, caiu como uma luva na minha vida de seminarista e fez meus olhos sorrirem e se enamorarem do que estava para além dos muros daquele seminário teológico, em que me encerrava. O livro foi publicado em 1984, quando o Brasil vivia uma convulsão política e as transformações sociais que se desenhavam enchiam de um sentimento de esperança na liberdade, os proletários das fábricas, a juventude, a intelectualidade, a classe artística e as militâncias, todos e todas nas ruas. Nos anos 1990 ainda vivíamos sob essa névoa de novos tempos.

1998, 2008, 2018... pouco mais de vinte anos depois de meu primeiro contato com Freire, vejo-me agora tateando no escuro. Fraca e com raiva.

Global aid transparency: taking the data out of the darkness ...
A cada manhã as manchetes dos jornais brasileiros atualizam números assustadores de mortes em todo país. A pandemia do COVID-19 tem feito vítimas em todas as regiões do Brasil, especialmente, nos locais mais pobres e carentes de saneamento básico. Enquanto há gente que busca vaga em algum hospital para cuidar de alguém contaminado, outras pessoas sequer podem se despedir de quem perdeu em razão do vírus invisível. Testemunhos de familiares que perderam pessoas queridas relatam a tristeza de fecharem seus caixões sem a possibilidade do último contato. Vidas estão sendo abruptamente ceifadas e histórias sendo interrompidas, porque não há tempo para que seus finais sejam escritos. Histórias de vidas sem um final.

A trajetória da vida, por si mesma, soa algo vazia e sem sentido. Muitas vezes não a compreendemos e tentamos ver para além do que as evidências e os fatos do dia a dia nos mostram. Buscamos encontrar sentido. Mas o que fazer quando a trajetória biográfica é interrompida secamente? O que fazer quando o enredo da vida, já tão atabalhoado, torna-se trágico e sem um ponto final?

A perversidade que o COVID-19 nos permite ver a perversidade de pessoas que poderiam amenizar essa dor que estamos sentindo e não o fazem. É a crueldade de pessoas que poderiam evitar o espalhamento do vírus e ignoram essa solução. É o egoísmo dessa gente que coloca a economia acima da vida. O vírus escancarou o que há de pior nas pessoas que tem em suas mãos o poder: a ideia de que existem pessoas destinadas à vida e ao desfrute dela, enquanto outras estariam fadadas à morte. Essa ideia torpe pode ser bem identificada na pergunta “E daí?”, com a qual o Sr. Excrementíssimo retrucou uma jornalista que pedia satisfação sobre o aumento das mortes por todo país. “E daí?”, ele disse com descaso, com tremenda insensibilidade, com completa ausência de compaixão ou solidariedade.


(Charge: Duke)
Crédito da ilustração: Carge, Duke. 

Estamos diante de um des-governo genocida, porque não esconde sua intenção de eliminar pessoas deixando-as para trás. É um des-governo alinhado com a eugenia, isto é, com o entendimento de que ao deixá-las a sua própria sorte, sobreviverão apenas as pessoas mais fortes. As fracas morrerão. Esse des-governo faz pouco caso da gente, porque entende que existem vidas que valem a pena, enquanto outras não. Por isso, direito é coisa que se deve garantir somente para alguns: os fortes. Não todos e todas. Somos uma sociedade de classes e as mais baixas servem ao propósito de servir as mais altas. Se não servem a esse propósito, que sejam descartadas. Esse é o pensamento da elite.

A tragédia é grande. Precisamos gritar que todas as vidas valem a pena. Precisamos gritar especialmente para aqueles e aquelas que ao invés de cobrarem seu direito de preservar a vida, seguem fazendo a roda da economia girar porque seus chefes, patrões, empresários os ameaçam dizendo que se não o fizerem “morrerão”. Essas pessoas são prisioneiras de uma lógica perversa. Elas acreditam que o destino da pessoa pobre se cumpre quando acaba com a inevitável morte: ela morrerá se sair de casa, ela morrerá se ficar em casa.

Minhas esperanças nas boas ideias de políticas sociais estavam por um fio. Eu ando por um fio. Mas nos últimos dias tenho me apegado à convicção de que a educação, sobretudo, a educação popular, pode ser o caminho da mudança. Quando conseguirmos falar com nossa gente de modo que elas entendam que seus direitos não são presentes, mas conquistas, que esses direitos estão previstos na Constituição que é a lei máxima de um país e que tais direitos são pensados como garantias para que as pessoas possam viver plenamente suas vidas, daí, quem sabe então, elas deixem de repetir “eu não preciso do governo”, “eu não confio em política”, “eu me fiz sozinho”, “eu quero é trabalho”. Essas pessoas precisam de educação. Temos direitos conquistados, mas não efetivamente assegurados.

Sim, nós precisamos de trabalho e, sim, o trabalho nos dá certa sensação de dignidade. Mas nesse momento, o Estado deveria estar cuidando de todos nós. O Estado deveria cumprir sua parte no acordo que temos com ele, deveria preservar nossas vidas. E se a preservação requer que fiquemos em casa, um subsídio de 600 reais (que é verdadeiramente pouco) não é presente. É direito! Aí se revela tão importante a educação. Não pagamos impostos à toa. Não estamos querendo caridade. O Estado não está sendo bonzinho. Ele deveria estar cumprindo apenas a sua parte no acordo que visa o Bem-estar-social de todos e todas, pois todos cidadãos e cidadãs brasileiros e brasileiras importam.

E como se faz esse conhecimento ser comum?

Aqui retomo a inspiração que deu origem ao título desse pequeno texto:

Fiquei cego no início da primavera de 1980. Uma operação bem sucedida devolveu-me a visão um ano depois.
Durante aquele tempo, foram gravados meus diálogos com Fausto Brito, no hospital.
Tecíamos, a cada dia de minha escuridão e de sua lucidez, esta colcha de retalhos, feita dos saldos de nossa militância política cotidiana, utópica e apaixonada.
A clareza que foi surgindo aos poucos, em meu espírito, fez-me crer que a escuridão é luz bastante para a esperança revolucionária

É isso! Uma cena real da vida de Freire me trouxe de volta. A escuridão que vivemos pode nos cegar momentaneamente, mas ela não nos algemará à ignorância. Não podemos permitir isso.

E num novo delicioso trecho:
“... a busca da liberdade é algo permanente, sua conquista é incessante. Suas razões mudam com o tempo, assim como os que pretendem impedir a realização da liberdade de cada um ou de todos. Ser livre agora, não garante, pois, que o sejamos amanhã. Ser livre é um processo contínuo de ir à luta para garantir as conquistas já feitas e ampliá-las”.

Então, embora ainda atordoada diante tanta perversidade, correu um fio dessa esperança de liberdade na minha coluna acima e ela acendeu ideias no meu cérebro como luminares. Ideias que sempre estiveram lá, mas andavam adormecidas.

É a educação que liberta mentes escravizadas. É a educação que pode dar condições para que as pessoas pensem por si mesmas e façam escolhas com mais consciência de si, de seus direitos e do bem comum. Quando a consciência de que somos pessoas com potencial para autonomia de pensamento e liberdade para auto-realização for real e comum a todos e todas, certamente, a ilustração do gado indo rumo ao matadouro não fará mais sentido. Como também não fará mais sentido a ideia de que uns são merecedores de mais e outros de menos.

Quiçá haja nesse tempo condições para a equidade social. No dia em que as pessoas perceberem que existem outras pessoas. Quando pela educação as pessoas se libertarem das repressivas noções como “eu não preciso do governo”, “eu não confio em política”, “eu me fiz sozinho”, “eu quero é trabalho”, elas descobrirão a alteridade: “a necessidade violenta e incoercível da liberdade dos outros, de participar das organizações que batalham pela liberdade coletiva, combatendo todas as formas de repressão à liberdade individual e coletiva”.

E mais: quando essa luta for revestida de paixão, quando nossos corpos exalarem tesão, quando nossa alegria for tanta que será impossível contê-la, aí retomaremos as conquistas por mais algum tempo... Por mais algum tempo, pois sempre existirão os baluartes do conservadorismo, os que defendem a escravidão das pessoas e das ideias. Sempre existirão aqueles que negarão a liberdade das pessoas e de seus corpos, da espontaneidade, da criatividade, de novos modos de convivência social. É, esses agentes do caos seguirão existindo.

Mas, que bom que existe o "mas", com utopia e paixão re-encontraremos o caminho da justiça social. Fazendo e sendo mais que resistência: sendo nós mesmos amantes-revolucionários e revolucionárias. "Amanhã vai ser outro dia!"

#EducarParaTransformar
#Resistimos


18 de maio de 2020
Elisa Rodrigues

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